segunda-feira, 8 de junho de 2009
Ribeirão da Ilha
quinta-feira, 28 de maio de 2009
Ao final de Maio
quarta-feira, 6 de maio de 2009
seis de maio
a palavra que lemos.
Os anos, as palavras desde então.
Somos sempre os mesmos.
Sabes, o espaço é infinito,
sabes, não precisas voar,
sabes, o que se escreveu em teu olho
aprofunda-nos o fundo.
(Paul Celan, A rosa de ninguém, 1963)
[este é para celebrar o aniversário do nosso Leo]
sexta-feira, 1 de maio de 2009
primeiro de maio
sábado, 25 de abril de 2009
NO VALE
Tinha vantagens em não saber do inconsciente, vinha tudo de fora, maus pensamentos, tentações, desejos. Contudo, ficar sabendo foi melhor, estou mais densa, tenho âncora, paro em pé por mais tempo. De vez em quando ainda fico oca, o corpo hostil e Deus bravo. Passa logo. Como um pato sabe nadar sem saber, sei sabendo que, se for preciso, na hora H nado com desenvoltura. Guardo sabedorias no almoxarifado.
[Adélia Prado, "Quero minha mãe", Ed. Record, 2005]
quarta-feira, 22 de abril de 2009
Aviso aos navegantes.
segunda-feira, 30 de março de 2009
Hino a Marte
Ouçam-me
Protetores da humanidade,
Provedores da doce coragem da juventude.
Lancem seu brilho,
Sua luz suave
Sobre nossas vidas .
E seu poder marcial,
Para que eu possa dissipar
O medo
Da minha mente
E diminuir essa agitação enganosa
Do meu espírito, e dominar
Essa voz pungente do meu coração
Que me incita
A penetrar o tumulto arrepiante da batalha.
Tu, afortunado deus,
Dá-me coragem
Para permanecer nas leis seguras da paz
E assim escapar
De batalhas com inimigos
E da sina da morte violenta.
Tu, amada deusa,
Toma a minha alma
Gravando nela
A imagem da minha vida.
[Denise, de um anexo num livro de mitologia]
sábado, 28 de março de 2009
Resíduos IX
quarta-feira, 25 de março de 2009
Resíduos VIII Conversa com Lorca (e Fabiano)
Coloca-me,
como sinete sobre teu coração
como sinete em teu braço.
Pois o amor é forte, é como a morte[i].
Durante o silêncio da escrita, deixa-se acompanhar
pelas vastidões de Mozart, pelas lentidões de Mahler.
(A música não deve morrer, vai perdurar além do fim do mundo!)
Depois de 7 anos, desliga o toca-discos e
abrem-se as comportas de um dique.
Uma linguagem alegórica, contundente,
investiga o enigma, o fundo do poço:
a mulher quer perfurar
o mistério divino que limita a escrita.
Não se transformam os temas,
expandem-se, entretanto,
por sua duração no tempo.
(Dentro do círculo/Faço-me extensa/
Procuro o centro/me distendendo[ii].)
A plena comunhão erótica culmina
na imagem hierogâmica, de sacerdotisa
cumprindo ritual: a Mulher conta ao
Homem a verdade da experiência amorosa.
(Olhei-me a mim, como se tu me olhasses[iii].)
A mulher, durável refúgio, quer despertar
para o encontro, o movimento escorregadio do homem.
Permanência e fluidez = mulher—poeta.
Do Amor caminha para a Morte, e
anula falsas distâncias ao tocar
com ousada intimidade a poderosa figura,
participante indispensável da Vida.
(Te sei/ com a boca viva/ provei/
Em vida, morte, te sei/ Juntas. Tu e eu[iv].)
Aproxima-se dela o tempo em que os frutos
do sagrado serão recolhidos: enquanto isso,
são as centelhas dessa luz encoberta
na poesia, nas palavras.
Não interrompe a procura, até que se diluam
as fronteiras enganosas entre o erótico e o místico.
O Desejado é o verdadeiro Deus,
a quem anseia se entregar,
como um dia se entregou ao chamamento do amado.
(Porque vives de mim, Sem Nome[v].)
No húmus do universo criado, toma coragem
e manifesta, patente ou latente,
sua verdade maior: [como fez o grego Kavafis]
rompe a ligação entre Deus e o homem
ao roubar a origem divina do ser humano.
(Como se eu mesma/ flutuasse cativa, ofélica, /
sobre Tua Grande Face[vi].)
Pelo vazio cavado com essa ruptura, a mulher
entrega-se a uma nova e insólita experiência:
Deus e homem descobertos como aspectos
da mesma coisa.
O Novo Sagrado — poderoso, temido,
desejado, atraente como
um abismo, porém
colocado sob seu olhar, entre suas mãos.
(vives em mim, Sem Nome / Porque sei de ti
a tua forma/ tua noite de ferrugem[vii].)
[i] Cântico dos Cânticos, 8, 6.
[ii] Hilda Hilst, Júbilo, memória, noviciado da paixão, 1974.
[iii] Idem, Do amor, 1999.
[iv] Idem, Poemas XXIX, XXX, 1980.
[v] Idem, Sobre tua grande face, 1986.
[vi] Idem.
[vii] Hilda Hilst, Sobre tua grande face, 1986.
[Denise, extraído do seu "Escrito com o Livro de Jó", 2007, III - VI]
Resíduos VII Federico e eu
Como disse essa semana o nosso gentil e pensante ministro da cultura, Juca Ferreira, "a arte alimenta o espírito". O estômago ficou aliado ao espírito e pediu alimento da maneira que lhe cabe (e na proporção também) para viajar com Federico, o marido de Dalí. A escrita desse homem triste e viajado deixou-me inicialmente "boiando" entre palavras e combinações bem-feitas de versos naquele lindo idioma. Mais do que o que ele estava relatando, ou divagando em sua poesia, ó poeta, dirijo-me diretamente a outras possibilidades suas de escrita. Qual era a cor do seu papel? A sua caneta (ou pena!!!) foi produzida em Cuba? O estômago desse homem hispânico estava cheio ao passear a ponta da caneta (ou pena!!!) pelo papel? Vejo um papel roxo claro, uma caneta minuciosamente polida (sim, barroco!) e uma marca qualquer escrita em... español!! Por supuesto, no?
Ao ler os primeiros poemas de Federico, dormi, após comer. Sonhei com uma aula de estágio que fiz na 3ª ou 4ª fase de cênicas, na UDESC. Nela, estavam todos os meus amigos e colegas que passaram pelo curso, deixando-o cedo ou tarde. Aquela aula, que meu sonho proporcionou reviver, reunia todos aqueles que um dia passaram pela mínima experiência de cursar teatro na faculdade. Federico também passou pela experiência de escrever em español em terras americanas do norte. Possivelmente, com uma caneta barroca em papel roxo. O sonho me acalentou e demorou alguns dias pra eu concluir, ou esboçar: foi porque eu li Federico.
Corri ao guarda-roupa, onde guardo roupas e uma obra do sugestionável Federico chamada "Assim que se passarem 5 anos", texto teatral que ele intitula ser "um devaneio sobre como vejo o tempo passar e a natureza se transformar". Como aquelas palavras se parecem com os poemas do Central Park! Li novamente toda a peça. Divaguei possibilidades de encenação - como não fazer isso?! - comi e voltei à Nueva York com Federico. E aí... vi tanto Tadeusz Kantor, que também dança sua(s) morte(s), bem como vi todas as suas mulheres sofridas e derrotadas pela terra e pelo acontecimentos de uma espanha forte, masculina(o), pontiaguda, em meio à guerra e ao cuidado com o futuro. Mas tudo que não consigo ver é o futuro em quaisquer versos de Federico. Sabe-se de agora e de antes. Até mesmo do já! Depois, futuro, lá na frente... nada disso me aparece nele. Espera-se a morte para o próximo verso e ela não vem. Espera-se um filho para pobre Yerma do deserto e ele não vem. Segura-se o filho da pobre mãe de sangue e ele se vai pelo corte da navalha dos Félix. E Alba trancafia seu luto por sete anos sem abrir portas e janelas. A trilogia espanhola da dor é a coletânea do suspense poético americano de Federico. O que Dalí acharia desse surrealismo literário?
Não li nada relacionado ao momento da escrita de Federico. A obra me caiu deliciosa por sí. Eu, que sou um amante dos "making off" e das trajetórias artísticas fiz essa opção. Foi como quando li "Escrita com o livro de Jó", tese da dona Denise. O apêndice onde ela relata seu percurso de escrita apareceu-me como um pedido do orientador e não parte da obra, pois a obra já diz (e como diz!) e contempla toda possibilidade imaginativa do "como", "onde", "por que", etc... Fiquei receoso de encontrar em algum momento informações sobre a cor do papel e da caneta.
Resíduos VI 1a epistola aos interditos - alvejaram Lorca
porque yo no soy un hombre, ni un poeta, ni una hoja,
pero sí un pulso herido que sonda las cosas del otro lado.
Federico García Lorca
sinto o gosto de cada um dos estilhaços
marcarem de púrpura meu rosto.
o impacto é súbito e os cortes simultâneos,
mas sinto o gosto de cada centelha sua
neste milésimo que agora conto e canto.
estou no campo e as cercas nos fazem rebanho.
eu não fui julgado,
os fuzis não me são estranhos,
respiro uma estrela na lapela.
estou em frente à imagem sua,
forjada do calor dos fornos e terra cinza,
enquanto se sustenta na ameaça de disparo,
embebida em carne nua,
a marreta trêmula que o golpe avista.
o impacto da marreta me enrubesce a face
e não é beijo o que sinto.
falta-me corpo, já não existo,
a lei dos campos dilacerou a imagem.
ps.: hoy recibí en el mar una carta de amigos.
(oberdan piantino - carta escrita após leitura de "poema doble del lago edem", de Federico García Lorca, durante encontro sobre o livro "poeta en nueva york", na reunião de março de 2009. também, carta-dedobramento publicada em os escritores invisíveis. imagem de Lorca, "san sebastián", 1927).
terça-feira, 24 de março de 2009
Federico García Lorca
Lorca pensou o mundo de uma forma única, e traduziu estes pensamentos em música, literatura, teatro, desenho e pintura.
Morreu aos 38 anos fuzilado pelos soldados de Franco durante a Guerra Civil Espanhola, na madrugada de 19 de agosto de 1936, em um local bem próximo de Fuente Vaqueros.
(http://www.garcia-lorca.org/)
O poema Grito Hacia Roma faz parte do livro Poeta em Nueva York, publicado pela primeira vez em 1940 no México e nos Estados Unidos. O livro foi escrito entre os anos de 1929 e 1930 quando Federico viveu na cidade de Nova Iorque, como estudante de inglês na Universidade de Columbia.
A mi editor Armando Guibert.
(DESDE LA TORRE DEL CRYSLER BUILDING)
Manzanas levemente heridas
por finos espadines de plata,
nubes rasgadas por una mano de coral
que lleva en el dorso una almendra de fuego,
peces de arsénico como tiburones,
tiburones como gotas de llanto para cegar una multitud,
rosas que hieren
y agujas instaladas en los caños de la sangre,
mundos enemigos y amores cubiertos de gusanos
caerán sobre ti. Caerán sobre la gran cúpula
que untan de aceite las lenguas militares
donde un hombre se orina en una deslumbrante paloma
y escupa carbón machacado
rodeado de miles de campanillas.
Porque ya no hay quien reparta el pan ni el vino
ni quien cultive hierbas en la boca del muerto,
ni quien abra los linos del reposo,
ni quien llore por las heridas de los elefantes.
No hay más que un millón de herreros
forjando cadenas para los niños que han de venir.
No hay más que un millón de carpinteros
que hacen ataúdes sin cruz.
No hay más que un gentío de lamentos
que se abren las ropas en espera de la bala.
El hombre que desprecia la paloma debía hablar,
debía gritar desnudo entre las columnas,
y ponerse una inyección para adquirir la lepra
y llorar un llanto tan terrible
que disolviera sus anillos y sus teléfonos de diamante.
Pero el hombre vestido de blanco
ignora el misterio de la espiga,
ignora el gemido de la parturienta,
ignora que Cristo puede dar agua todavía,
ignora que la moneda quema el beso de prodigio
y da la sangre del cordero al pico idiota del faisán.
Los maestros enseñan a los niños
una luz maravillosa que viene del monte;
pero lo que llega es una reunión de cloacas
donde gritan las oscuras ninfas del cólera.
Los maestros señalan con devoción las enormes cúpulas sahumadas;
pero debajo de las estatuas no hay amor,
no hay amor bajo los ojos de cristal definitivo.
El amor está en las carnes desgarradas por la sed,
en la choza diminuta que lucha con la inundación;
el amor está en los fosos donde luchan las sierpes del hambre,
en el triste mar que mece los cadáveres de las gaviotas
y en el oscurísimo beso punzante debajo de las almohadas.
Pero a viejo de las manos traslúcidas
dirá: Amor, amor, amor,
aclamado por millones de moribundos;
dirá: amor, amor, amor,
entre el tisú estremecido de ternura;
dirá: paz, paz, paz,
entre el tirite de cuchillos y melones de dinamita;
dirá: amor, amor, amor,
hasta que se le pongan de plata los labios.
Mientras tanto, mientras tanto ¡ay! mientras tanto,
los negros que sacan las escupideras,
los muchachos que tiemblan balo el terror pálido de los directores,
las mujeres ahogadas en aceites minerales,
la muchedumbre de martillo, de violín o de nube,
ha de gritar aunque le estrellen los sesos en el muro,
ha de gritar frente a las cúpulas,
ha de gritar loca de fuego,
ha de gritar loca de nieve,
ha de gritar con la cabeza llena de excremento,
ha de gritar como todas las noches juntas,
ha de gritar con voz tan desgarrada
hasta que las ciudades tiemblen como niñas
y rompan las prisiones del aceite y la música,
porque queremos el pan nuestro de cada día,
flor de aliso y perenne ternura desgranada,
porque queremos que se cumpla la voluntad de la Tierra
que da sus frutos para todos.
domingo, 22 de março de 2009
quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009
Após um soberbo dia de verão
domingo, 22 de fevereiro de 2009
Encontro Março 2009
Francesco di Roma
Por Chico Buarque
No dia seguinte, já tinha sol no jardim da casa e tudo era novidade. Tinha a pastaciutta, o copo de vinho, a Via Nmentana, Villa Torlonia, Porta Pia, o ônibus pela Piazza Fiume, tinha o Cine Capranica, o Cine Capranichetta, tinha a Lollobrigida, tinha Pane, amore e fantasia. E eu corria em bicicleta pelo Viale Grizia, brincava com novos amigos, aprendia belas palavras, como cálcio di rigore (penalti), rovesciatta (rebatida), Sampdoria (clube de Gênova), Sentimenti IV (goleiro do Juventus), e palavrões que ensinava às minhas irmãs. Minha mãe conhecia bastante bem o italiano, mas não os jogadores de futebol e palavrões, e meu pai tinha um acerto acento napolitano, porque imitava Roberto Murolo ao cantar Amena e Core. Papai tinha também uma professora de italiano, e eu me lembro bem do dia em que a apresentou à família, mais ou menos com o mesmo orgulho com que nos tinha introduzido naquele palazzo frio, empoeirado e meio arruinado. A signorina, porém, era muito jovem, viçosa, luminosa, a pele muito clara, os cabelos muito negros, os olhos enormes, e ao olhá-la compreendi logo a palavra desiderio (desejo).
Tinham me explicado que a Itália era um país pobre, apenas saído de uma guerra atroz. Não nos faziam estudar numa escola italiana porque o ensino não era satisfatório, assim diziam. Fomos matriculados na Notre Dame International School, e eu pensava sempre no meu pai que, vindo de tão longe, talvez não fosse um professor satisafatório ou dava lições numa péssima Scola. A minha casa era uma escola onde se falava em inglês, lia-se Mark Twain e se jogava beisebol. Quando a bolinha era atirada fora dos muros, coisa que acontece a cada minuto naquele esporte bizarro, cabia a mim procurá-la na Vila Aurelia ou pedi-la ao jardineiro da casa vizinha. Quase todos os meus colegas eram meninos norte-americanos que não tinham o hábito ou a necessidade de falar a língua dos outros. Ali também fiz algumas amizades, mas na verdade não amava tanto a escola americana, porque lá dentro me sentia mais estrangeiro do que na rua. De fato, para os meus colegas, eu, um certo Francisco, originário do Brasil, era italiano e me chamava Francesco.
Em janeiro de 1969, quando voltei a Roma, reencontrei os monumentos, os palazzi, as fontanne (fontes), os viali (avenidas), tudo ali, tudo igual às minhas recordações, somente um pouco menor. Logo na primeira manhã caminhei pelas ruas da minha infância, certo de poder rever os mesmos personagens de tantos anos atrás, talvez pequeninos eles também. Senti-me porém como o míope de Italo Calvino, encontrando rostos desconhecidos ou cumprimentando gente que não me respondia. À hora do almoço, perdi-me num labirinto perto do Pantheon. Vaguei pelos becos desertos, entre casas amarelas com portas e janelas fechadas, depois me encontrei numa praça com a estátua de um elefante, e à sombra de uma igreja tinha um carabinieri (soldado) que dormia sentado no cavalo. Despertei o carabinieri, porque precisava de uma indicação, mas em seguida permaneci mudo. Vinham-me à mente palavras soltas como Sampdoria, cálcio d’angolo (escanteio), e naquele momento me dei conta de que não sabia mais falar o italiano. Humilhado, voltei ao hotel, onde minha mulher, grávida, falava ao telefone com o Rio de Janeiro. As notícias do Brasil não eram maravilhosas, de modo que minha permanência no exterior, prevista para três semanas, devia se prolongar por uma duração incerta. Estabeleci-me em Roma, deixando o Albergue Raphael por um bairro que parecia mais um subúrbio do Rio.
Roma, a sentia agora mais dura, como se suspeitasse de que nela vivia pensando numa outra. Era verdade, mas ao mesmo tempo estava sinceramente decidido a não pensar mais na minha cidade. O meu coração queria pensar em Roma, somente Rom. Gravei um disco em italiano quase sem acento, fui ao rádio e à televisão, cantei no meio da Piazza Navona, mas Roma não me compreendeu. Inventei um samba em dialeto romanesco, mas Roma não é boba. Disse a Roam que no Rio não me queriam, disse-lhe que não podia viver assim no ar, sem uma cidade. Era ridículo, queria desesperadamente que Roma me aceitasse. Então ofereci a Roma minha primogênita.
Minha filha Silvia nasceu romana no fim de março, e Roma mandou à Clínica Moscati dois poetas. Vinicius de Morais fez uma enfermeira gravar o primeiro choro da criança. E à mãe ainda adormecida, Giuseppe Ungaretti dizia: ‘Bella, bellla!”. Depois Roma me acolheu no Piazzele Flaminio, num apartamentinho com um balcãozinho de onde se via a Villa Borghese. Dali saía a pé pela Via Del Corso, Piazza Colonna, o Cine Capranica, o Cine Capranichetta e daí pela Vila Tritone, Fontana de Trevi e o restaurante Al Moro, do qual uma noite vi sair Federico Fellini e emudeci, porque e pareceu que viesse a cavalo. Nesta cidade vivi ainda um ano e meio, e aqueles que não podiam ser os temps mais felizes da minha vida. Mas com o consenso de Roma, nela vivi um tempo que, em outra parte, teria sido invivível.
Em Flumicino (aeroporto romano), o policial olha a torna a olhar cada folha do meu passaporte, sacode a cabeça, procura o meu nome no computador, chama alguém pelo telefone. Já esperava toda essa operação. Estamos em um país rico e o meu documento é sempre aquele de um cidadão sul-americano. Fecha o passaporte, reabre o passaporte, me observa e observa a foto, na qual nem eu mesmo me reconheço, porque me vejo com a cara do meu pai quando veio ensinar na Universidade de Roma. “Músico” exclama enfim o policial, e de repente se põe a tocar um tambor imaginário. Revela-me que ele também é um contrabaixista diletante, e me restitui o passaporte dizendo-se um fã da nossa música, a música étnica! “Música latina”, acrescenta, e me diverte saber que no coração do Lácio se chama latina uma música tão estranha. Giro afora pelo aeroporto que não recordava tão grande. Depois de 30 anos o ampliaram, sem dúvida, mas é possível também que com o tempo os objetos da memória comecem a comprimir-se, como se estivessem dentro de um ônibus superlotado. Quando consigo pegar minha maleta, que rodava também solitária no aeroporto, me vejo diante de uma jovem com um sorriso que me é familiar. É uma signorina tão viçosa, tão luminosa, com a pele tão clara, os cabelos tão negros, os olhos tão grandes, que poderia ser uma professoressa de italiano. Mas ao contrário é a agente de turismo que me pergunta: ‘may I help you?’. No grazie, le dico, Il mio nome éFrancesco.
(sem data, sem fonte...achei entre papéis num caixa... Denise)
Resíduos V
Quando descansou do livro, lembrou-se da carta da mulher, a outra enfim distante, e foi tomado pelo alívio. Há quanto tempo não se sentia desse jeito, somente em sua própria companhia?
Aquela fora uma mulher plena de palavras, tantas vezes implacável em sua busca obsessiva pela clareza, pela verdade. Coisa atroz essa necessidade de consciência em uma mulher! Foi assim que seu desejo pelo corpo dela extinguiu-se, lembra-se do exato momento em que se quebrou dentro dele a fascinação, que imaginara eterna, por aquelas costas em tons de oliva, ah! perfeitas. Olhou e conteve a mão que domesticada já se estendia. Ela coração clarividente de imediato soube.
Entraram juntos no tempo que não é mais. Juntos viveram em dolorosa solidão a espera do que ainda não é.
Exausto pela breve memória, retoma a leitura, ansiando por palavras de outros mundos. Na verdade, este homem sempre ansiara por ler, nunca por ser lido.
(Imagem: Hopper, O homem e a leitura)
[Escrito por Denise após a troca de 'cartas' com o amigo Dan]
Resíduos IV
Carissimo,
Entendo seu susto mas me falta a paciência. Já lhe disse certa vez, homens são como troncos e, mulheres, nós somos como folhas. O silêncio masculino é o de quem deseja falar, mas não pode. Derrubado por um tronco, o coração da folha batendo uma só palavra: tum-pusilânime-tum. Com essa imagem árborea! foi que saí finalmente da cama ainda morna e me vesti da paisagem que sonhava em frente à janela. Vê esses vestígios do pincel riscando a areia? Por ali passaram conchas arcanas esfoliando a memória de um tempo que não é mais. Descubro que estou pobre. Dentro de mim não existe saudade de ninguém. Não sei mais quem sou gostando mais dessa que ainda não conheço. Não é tão ruim afinal. Estando pobre, sempre posso enriquecer. O poeta estava dizendo das coisas poderosas e permanentes mas o poeta não falava de gente, falava da água e do vento. Hoje escrevo para confirmar a não existência de você. Vazia a fonte onde bebi com sofreguidão. Não há ausência, não há presença. Apenas eu em lugar nenhum. Assinado: Denise
(Imagem: Hopper, Spends the summer painting with Jo)
[Escrito por Dan e Denise, depois do encontro com Cortázar]
Resíduos III
Eu fiquei sem saber o que dizer, inicialmente – intermediariamente também! Eu li o conto direto, sem pausas, sem café, sem ovos cozidos, sem cheiro de couve-flor fervida. Li em português e em espanhol.
Ainda não sei descrever as suburbanas imagens a que este conto me remete. Não há luz natural nas imagens que me veêm. Pouca luz. Mas gosto disso, porque me sinto melhor do que numa localidade bem iluminada, “cosmopolita”. Não vejo Paris nas descrições. E isso veio à tona na conversa de ontem numa fala da Denise e do ZP. Eu nunca saí do meu país, mas minhas imagens são descrições de turista...
Simpatizei com Billy, acho-o tão “inocente” com seus desejos, que o rastro de sangue sobre a neve seja a revelação de uma cegueira emocional. Ele sabe, em alguma instância, que é escolhido. E age como tal (aliás, adorei a teoria do ZP!!!).
Nena Daconte tem sobrenome de loja de luxo do Shopping Morumbi (porque no Iguatemangue eu duvido que fique bem uma DASLU, DIOR, DACONTE...). Mas, tirando toda associação de mocinha babaca que entra nessas lojas e acha que arrasa, ela é fantástica. Quem começa um conto sangrando e termina morta com tanta graça? Somente Daconte.
Não sei mais...
A tradução podia ser pior, tendo em vista que o feitor manteve limpo e fluido em nosso complicadíssimo idioma o andamento nebuloso do conto.
É belo e conquistador esse conto.
E confesso que ler foi uma sensação tão prazerosa quanto ouvir a leitura do ZP e os comentários sobre ele.
[Escrito por Fabiano depois do encontro com Garcia-Marquez]
Resíduos II
01 de agosto 02h15
O conto é um sonho.
02 de agosto 13h10
Recuso a psicanálise, acredito no Talmude, o sonho é sua própria interpretação.
03 de agosto 17h01
[Deus não é neutro, nem é Ele uma abstração.]
04 de agosto 23h50
Nena e Billy, duas almas em fogo.
05 de agosto 14h29
A viagem serve para desenhar a história da conversão dos personagens.
06 de agosto 0h20
A matéria aquosa tornou-se gelo nevado, o envoltório trouxe brumas ao sonho, dando início ao rito que levaria os amantes ao seu destino individual.
07 de agosto 12h00
Não há mais sangue, entre alvos lençóis e paredes, a Nena resta a memória da neve tocada por seus olhos violeta. No banheiro do hotel, sob a torneira vacilante, o marido retira a última mancha do vison branco. E o fogo, nunca mais.
Resíduos I
O rastro que deixa o rastro
do teu (dela) sangue na neve e
o percurso que segue o rastro.
1.
Numero um
Senta na livraria e lê, acaba e lê de novo. Compra um caderno pensando na imagem “Olhos de pássaro”.
Numero zero
Já leu esse conto, uma das primeiras vezes que agarrou a literatura pelo pescoço foi com
Agarrar a literatura pelo pescoço foi um pouco lento, pegou ela e engoliu-a como um perfume pelos ouvidos com o objetivo de segurá-la enquanto era exalada pelos lábios do dono da cama em que descobrira o mundo.
Achou o mundo fantástico, e o autor fazia parte do mundo. (Entre os perfumes também veio Julio [Cortázar], e entre mundo e mundo vieram infinitos dilúvios de mundo).
Numero dois
Vai para o café onde dá para fumar e desenha 4 páginas de meninas Olhos de pássaro.
Desiste.
Com o alivio que produz a desistência desenha mais uma pagina: gotas na margem esquerda caindo até o chão (da pagina).
Como já tinha desistido mesmo e não têm nada a perder desenha mais duas paginas.
Percebe que a expressão mesmo é “Olhos de pássaro feliz” e se sente triste: A felicidade do pássaro muda completamente a história.
Engana a si mesma afirmando que desde o começo tinha percebido que a frase certa era olhos de pássaro feliz.
Gosta do ultimo desenho e compondo o rabisco escreve: OJOS DE PÁJARO FELIZ (porém quase morrendo), acha engraçado ter misturado as duas línguas, mas não vai apagar, deu bastante trabalho.
0.1
Numero zero ponto um
“O rasto do teu sangue na neve trata sobre uma mulher que morre desangrada porque é picada por uma flor que têm a mesma cor do sangue”.
Gostava de contar essa história, acha bonita a idéia da vida escorrendo por um furo minusculamente pequenininho.
3.
Numero três
Sorri pensando em limpar a poeira do quarto mnemônico onde estava guardado o conto, e como estava esperando, a história muda completamente.
Acontece que a mulher é uma menina e têm um nome, Nena Daconte, e mesmo que Nena não seja um nome, não importa, afinal vai acabar esquecendo o nome.
0.2
Numero zero ponto dois
Pergunta se é possivel escrever literatura repetindo varias vezes a mesma palavra em frases continuas, o pai diz que sim pois “
Numero quatro
O Billy Sanchez –que nomezinhos feios, bem coisa de colombiano- deve ser um babaca, se ela conhecesse ele na vida real ia falar mal dele para todo mundo. (Um novo amor platônico para entrar na lista).
Numero cinco
Da risada e se sente maravilhada, o autor consegue fazer com que o furinho modifique completamente a Nena. É assim mesmo que acontece quando alguém esta doente.
0.3
Numero zero ponto três
Na casa da tia avô, que visita uma vez cada dois anos, lê uma declaração sobre a relação do autor com a morte.
Ela morre de medo da morte.
Ele bebe cerveja conversando com a morte.
Numero seis
O abrigo de pele deve ser da mesma cor da neve.
Deve ser bonito o sangue sobre a neve.
Numero sete
Estava tudo errado. A história é sobre um cara que por andar pensando em coisas sem importância passa a vida enteira sem perceber que as flores enfiam os dentes em qualquer dedo que as segura sem delicadeza, podendo ferir a vitima de morte.
8.
Numero oito
Estava tudo errado de novo. A história é sobre um cara obrigado a conhecer uma cidade estrangeira.
Numero nove
A história é sobre um cara que fica olhando para o papel de parede.
No papel de parede está desenhada a seqûencia enteira da sua vida, ele sabe disso mas é impossivel fazer parte do desenho (onde REALMENTE acontece sua vida) porque ele é uma pessoa e não um desenho.
10.
Numero dez
Na história, um cara que não entende nada sobre cores nem flores volta para Cartagena, encontra o Garcia Marquez e conta detalhadamente sua visita à França. Tudo isso para confessar que apesar de todos os esforços foi impossivel presenciar a morte mais linda do mundo.
[foto: Eriketa]
[Escrito por Erika, depois do encontro com Garcia-Marquez]
Italo Calvino
O escritor Italo Calvino nasceu em 1923, em Cuba, por onde seus pais, cientistas italianos, estavam de passagem. Sua infância foi em San Remo, na Itália. Em 1941, matricula-se na Faculdade de Agronomia de Turim; mas abandona os estudos ao engajar-se na Resistência Italiana contra o exército nazista. Ao final da guerra, Calvino vai morar em Turim, onde se doutora em letras com uma tese sobre Joseph Conrad.
Em 1972, publica Cidades Invisíveis. Se um Viajante numa Noite de Inverno, de 1979, explora com ironia a relação do leitor com a obra literária. Palomar é de 1983. Traduzidos para inúmeras línguas, os três têm lugar de destaque no repertório da literatura pós-moderna da Europa.
Calvino morreu em 1985, em Siena, consagrado como um dos mais importantes escritores italianos do século 20. Entre seus muitos outros livros incluem-se Seis Propostas para o Próximo Milênio, Amores Difíceis e O Castelo dos Destinos Cruzados.
O texto A espada do sol pertence ao livro de Calvino intitulado Palomar, sua última publicação em vida. "PALOMAR é o nome de um famoso observatório astronômico que durante muito tempo ostentou o maior telescópio do mundo. Por intencional ironia, é também o nome do protagonista destes textos curtos de Italo Calvino, pois este SENHOR PALOMAR é todo olhos, mas funciona quase sempre como se fosse um telescópio ao contrário, voltado não para a amplidão do espaço, mas para as coisas próximas do cotidiano. É como se ele nos dissesse que as grandes questões do mundo e da existência também estão presentes em cada objeto que observamos, em cada cena que presenciamos, que tudo a nossa volta é digno de ser interrogado e pensado..." Transcrito da orelha do livro (Ed. Cia das Letras, 1994).
A espada do sol
O reflexo no mar se forma quando o sol descamba: um brilho ofuscante se estende do horizonte até a costa, feito de uma infinidade de cintilações que ondulam; entre uma cintilação e outra, o azul opaco do mar escurece a sua rede. As barcas brancas tornam-se negras contra a luz, perdem consistência e extensão, como que consumidas por aquele pontilhado resplendente.
É a hora em que o senhor Palomar, homem tardio, pratica sua natação vespertina. Entra na água, afasta-se da praia, e o reflexo do sol se torna uma espada cintilante na água que do horizonte se prolonga até ele. O senhor Palomar nada na espada ou, melhor dizendo, a espada permanece sempre diante dele, retraindo-se a cada uma de suas braçadas e jamais se deixando alcançar. Por todo o espaço em que ele estende os braços, o mar adquire seu opaco tom vespertino, que se alonga até a praia atrás dele.
Enquanto o sol desce para o ocaso, o reflexo branco incandescente se colore de ouro e cobre. E seja onde for que o senhor Palomar se coloque, o vértice daquele triângulo agudo e dourado é ele; a espada o segue, indicando-o como um ponteiro de relógio que tivesse por eixo o sol.
“É uma homenagem especial que o sol me presta”, é tentado a dizer o senhor Palomar, ou melhor, o eu egocêntrico e megalômano que nele habita. Mas o eu depressivo e autopunitivo que coabita com o outro no mesmo contentor objeta: “Todos os que têm olhos vêem o reflexo que os segue; a ilusão dos sentidos e da mente os mantém sempre prisioneiros”. Um terceiro condômino intervém, um eu mais equânime: “Quer dizer que, seja como for, faço parte dos indivíduos que sentem e pensam, capazes de estabelecer uma relação com os raios solares, e de interpretar e avaliar as percepções e as ilusões”.
Todo banhista que a esta hora nade em direção ao poente vê a nesga de luz que se dirige para ele e que se extingue pouco além do ponto a que sua braçada o leva: cada um deles tem o seu reflexo, que só para ele tem aquela direção e se desloca com ele. De ambos os lados do reflexo, o azul da água é mais escuro. “Será esse o único dado não ilusório, comum a todos, a escuridão?”, indaga-se o senhor Palomar. Mas a espada se impõe igualmente aos olhos de cada um deles, não há como fugir dela. “O que temos em comum será justo aquilo que é dado a cada um como exclusivamente seu?”
As pranchas a vela deslizam na água, cortando com abordagens oblíqüas o vento de terra que se ergue a essa hora. Figuras eretas mantêm a retranca com braços esticados como arqueiros, contendo o ar que estaleja contra a tela. Quando atravessam o reflexo eis que, em meio ao ouro que as envolve, as cores da vela se atenuam e é como se o perfil dos corpos opacos entrasse na noite.
“Tudo isso acontece não no mar, nem no sol”, pensa o nadador Palomar, “mas dentro da minha cabeça, nos circuitos entre os olhos e o cérebro. Estou nadando em minha mente; é apenas ali que existe esta espada de luz; e o que me atrai é precisamente isto. Este é o meu elemento, o único que poderei de certa forma conhecer”.
Mas pensa também: “Não posso alcançá-la, está sempre além, não pode ser ao mesmo tempo algo dentro de mim e algo em que eu nado, se a vejo permaneço fora dela e ela permanece fora”.
Suas braçadas começam a ficar mais difíceis e incertas: dir-se-ia que todo o seu raciocínio, em vez de aumentar-lhe o prazer de nadar no reflexo, o estivesse deprimindo, como que o fazendo sentir nisso um limite, ou uma culpa, ou uma condenação. E também uma responsabilidade a que não pode fugir: a espada existe só porque ele está ali; se ele fosse embora, se todos os banhistas voltassem para a praia, ou simplesmente virassem as costas ao sol, onde acabaria a espada? Do mundo que se desfaz, o que gostaria de salvar é a coisa mais frágil: aquela ponte marinha entre seus olhos e o sol poente. O senhor Palomar já não tem vontade de nadar, está com frio. Contudo, continua: agora tem que ficar na água para que o sol não desapareça.
Então pensa: “Se vejo e penso e nado no reflexo, é porque no outro extremo está o sol lançando seus raios. Só conta a origem do que é: algo que meu olhar não pode suster senão de forma atenuada como neste entardecer. Todo o resto é reflexo entre reflexos, inclusive eu”.
Passa o fantasma de uma vela; a sombra do homem-árvore desliza entre as escamas luminosas. “Sem o vento, essa geringonça que funciona graças a uns nós de plástico, ossos e tendões humanos, escotas de náilon, não se manteria de pé; é o vento que faz dela uma embarcação que parece dotada de uma finalidade própria e de um intuito; é só o vento que sabe para onde vai a prancha e o surfista”, pensa ele. Que alívio se conseguisse anular seu eu parcial e duvidoso na certeza de um princípio do qual tudo deriva! Um princípio único e absoluto do qual têm origem os atos e as formas? Ou antes, um certo número de princípios distintos, linhas de força que se entrecruzam dando uma forma ao mundo tal como ele aparece, único, instante por instante?
“... o vento e também, está implícito, o mar, a massa de água que sustenta os sólidos que bóiam e flutuam, como eu e a prancha”, pensa o senhor Palomar bancando o morto.
Seu olhar voltado para cima contempla agora as nuvens vagantes e as colinas nebulosas dos bosques. Seu eu também está ao revés dos elementos: o fogo celeste, o ar que corre, a água que berça e a terra que sustenta. Seria isso a natureza? Mas nada do que se vê existe na natureza: o sol não se põe, o mar não tem aquela cor, as formas não são as que a luz projeta na retina. Com movimentos das articulações ele flutua entre os espectros; lastros humanos em posições inaturais deslocando seu peso desfrutam não o vento mas a abstração geométrica de um ângulo entre o vento e a inclinação de um maquinismo artificial, e assim resvalam na pele lisa do mar. A natureza não existe?
O eu flutuante do senhor Palomar está imerso num mundo desincorporado, intersecções de campos de forças, diagramas vetoriais, feixes de retas que convergem, divergem, se refrangem. Mas dentro dele permanece um ponto onde tudo existe de outro modo, como um nó, um coágulo, um obstáculo: a sensação de que está aqui mas poderia não estar, num mundo que poderia não ser mas é.
Uma onda intrusa turva o mar liso; um barco a motor irrompe e segue além expandindo um cheiro de combustível e soerguendo a barriga chata. O véu de reflexos untuosos e cambiantes de combustível se desfaz flutuando dentro da água; aquela consistência material que desaparece no ofuscamento do sol não pode ser posta em dúvida por esse traço da presença física do homem, que asperge sua esteira de perdas de combustível, resíduos não assimiláveis, misturando e multiplicando a vida e a morte em torno de si.
“Este é o meu habitat”, pensa Palomar, “e não é uma questão de aceitá-lo ou excluí-lo, pois só neste meio posso existir”. Mas e se a sorte da vida sobre a terra já tivesse sido traçada? Se a corrida em direção à morte se tornasse mais forte do que qualquer possibilidade de recuperação?
A onda escorre, vagalhão solitário, até não alcançar mais a praia; e o que parecia ser apenas areia, cascalho, algas e minúsculas conchas de crustáceos, com a retirada da água agora se revela um limbo de praia constelado de frascos, caroços, preservativos, peixes mortos, garrafas de plástico, sandálias rasgadas, seringas, manchas negras de óleo.
Arrastado também pela onda do barco a motor, envolvido pela maré de escórias, o senhor Palomar de súbito se sente detrito entre os detritos, cadáver rolado sobre as praias-imundícies dos continentes-cemitérios. Se nenhum outro olhar, a não ser o olhar vidrado dos mortos, se abrisse sobre a superfície do globo terrestre, a espada não tornaria mais a brilhar.
Pensando bem, tal situação não é nova: já durante milhões de séculos os raios de sol pousaram sobre a água antes que existissem olhos capazes de recolhê-los.
O senhor Palomar nada embaixo da água; emerge; eis a espada! Um dia um olho saiu do mar, e a espada, que já estava ali à sua espera, pôde finalmente ostentar toda a esbelteza de sua ponta aguda e seu fulgor cintilante. Tinham sido feitos um para o outro, a espada e o olho: e talvez não tenha sido o nascimento do olho que tenha feito nascer a espada, mas vice-versa, porque a espada não podia recusar um olho que a observasse de seu vértice.
O senhor Palomar pensa no mundo sem ele: aquele inexistente antes de seu nascimento; e aquele bem mais escuro depois de sua morte; procura imaginar o mundo antes dos olhos, de qualquer olho; e o mundo que amanhã por uma catástrofe ou lenta corrosão se torne cego. O que ocorreria (ocorre, ocorrerá) naquele mundo? Pontual, um dardo de luz parte do sol, reflete-se no mar calmo, cintila no tremular da água, e eis que a matéria se torna receptiva à luz, diferencia-se dos tecidos vivos, e de repente um olho, uma multidão de olhos floresce, ou refloresce...
Agora todas as pranchas de surfe estão estiradas sobre a praia e até mesmo o último banhista tiritante – de nome Palomar – sai da água. Está convencido de que a espada existirá mesmo sem ele: finalmente enxuga-se com uma toalha de banho e volta para casa.
[Encontro Fevereiro 2009 coordenação: Soraya]