cariño,
queria poder dizer que você não é real, que não ouve minha voz em meio aos rascunhos que o correio insiste em aceitar como carta. queria fingir que não sou lido no vazio magnético que une as palavras, mas sou mudo para jogos. se escrevo, estou exposto. aqui é o lugar. agora é o momento. se não há escapatória, por que não me solto da plataforma? queria explicar cada palavra do ontem e do hoje, mas não é função primordial de todo escritor expor-se ao risco ser mal compreendido? por que tantas perguntas se o que quero dizer é que sua leitura me desafia a pensar em gramática para fingir que não penso em semântica? respiro para soltar um fio de relato. hoje o papel está mais branco do que de costume. cubo de solidões, cobertor de silêncios, casa vazia. a areia da praia se foi no banho, a visita no ônibus, o dinheiro no mercado, o papel e o lápis ficam. queria que você saísse da cartola para não mais entrar em sua toca. porém o coelho sou eu, não o do travesseiro, não o das fotografias. sou de Alice, o fugidio. se a doninha e o pavão não estavam por perto, você chegou em boa hora para me roubar o relógio de bolso. um querer ser, não sendo, assim vejo essa paródia intimista. toda semelhança é admiração manifesta. toda frase, sopro necessário. cópia para um leitor que não posso fingir ser simulacro. estávamos a três. era com ela que você falava quando lia para mim. era entre você e ela que oscilava minha atenção. são timbres tão diferentes. se ela fala tão bem, você ouve com ainda mais destreza. eram esses ouvidos que ansiavam meus esboços guardados na manga. ela é tão mais forte do que eu, tão mais sincera. a teria entre as mãos se minha reação já não estive mapeada em signo? queria entender cada expressão sua para não precisar fingir que o caipira aqui é esforçado. espontaneidade? não em uma carta sem selo. definições? não em uma história de fraturas. droga, o não é meu escudo desmedido, o porquê, meu cacoete literário. não, não posso dizer não aos desafios, não quero. as histórias não são desculpas, as quero muito. é a elas que procuro proteger com o corpo de texto. Assinado: Dan
Carissimo,
Entendo seu susto mas me falta a paciência. Já lhe disse certa vez, homens são como troncos e, mulheres, nós somos como folhas. O silêncio masculino é o de quem deseja falar, mas não pode. Derrubado por um tronco, o coração da folha batendo uma só palavra: tum-pusilânime-tum. Com essa imagem árborea! foi que saí finalmente da cama ainda morna e me vesti da paisagem que sonhava em frente à janela. Vê esses vestígios do pincel riscando a areia? Por ali passaram conchas arcanas esfoliando a memória de um tempo que não é mais. Descubro que estou pobre. Dentro de mim não existe saudade de ninguém. Não sei mais quem sou gostando mais dessa que ainda não conheço. Não é tão ruim afinal. Estando pobre, sempre posso enriquecer. O poeta estava dizendo das coisas poderosas e permanentes mas o poeta não falava de gente, falava da água e do vento. Hoje escrevo para confirmar a não existência de você. Vazia a fonte onde bebi com sofreguidão. Não há ausência, não há presença. Apenas eu em lugar nenhum. Assinado: Denise
(Imagem: Hopper, Spends the summer painting with Jo)
[Escrito por Dan e Denise, depois do encontro com Cortázar]
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