domingo, 22 de fevereiro de 2009

Francesco di Roma

                                           
Fellini em um café da Via Veneto, Roma, anos 50-60


Por Chico Buarque

 Tinha oito anos em fevereiro de 1953, quando desembarquei em Roma com minha mãe e tantos irmãos. Meu pai já estava aqui há alguns meses, como professor de Estudos Brasileiros. Recordo-me de que era já noite funda quando entramos no palazzo (como os italianos chamam os antigos edifícios) da Via San Mariano, que papai tinha descrito em suas cartas. Achei o apartamento um tanto grande demais, muito velho, muito escuro, muito úmido. E tinha um problema com o aquecimento. Naquela noite, vestido com o capote, debaixo dos cobertores, fiquei imóvel na cama, de olhos abertos.

 

No dia seguinte, já tinha sol no jardim da casa e tudo era novidade. Tinha a pastaciutta, o copo de vinho, a Via Nmentana, Villa Torlonia, Porta Pia, o ônibus pela Piazza Fiume, tinha o Cine Capranica, o Cine Capranichetta, tinha a Lollobrigida, tinha Pane, amore e fantasia. E eu corria em bicicleta pelo Viale Grizia, brincava com novos amigos, aprendia belas palavras, como cálcio di rigore (penalti), rovesciatta (rebatida), Sampdoria (clube de Gênova), Sentimenti IV (goleiro do Juventus), e palavrões que ensinava às minhas irmãs. Minha mãe conhecia bastante bem o italiano, mas não os jogadores de futebol e palavrões, e meu pai tinha um acerto acento napolitano, porque imitava Roberto Murolo ao cantar Amena e Core. Papai tinha também uma professora de italiano, e eu me lembro bem do dia em que a apresentou à família, mais ou menos com o mesmo orgulho com que nos tinha introduzido naquele palazzo frio, empoeirado e meio arruinado. A signorina, porém, era muito jovem, viçosa, luminosa, a pele muito clara, os cabelos muito negros, os olhos enormes, e ao olhá-la compreendi logo a palavra desiderio (desejo).

 

Tinham me explicado que a Itália era um país pobre, apenas saído de uma guerra atroz. Não nos faziam estudar numa escola italiana porque o ensino não era satisfatório, assim diziam. Fomos matriculados na Notre Dame International School, e eu pensava sempre no meu pai que, vindo de tão longe, talvez não fosse um professor satisafatório ou dava lições numa péssima Scola. A minha casa era uma escola onde se falava em inglês, lia-se Mark Twain e se jogava beisebol. Quando a bolinha era atirada fora dos muros, coisa que acontece a cada minuto naquele esporte bizarro, cabia a mim procurá-la na Vila Aurelia ou pedi-la ao jardineiro da casa vizinha. Quase todos os meus colegas eram meninos norte-americanos que não tinham o hábito ou a necessidade de falar a língua dos outros. Ali também fiz algumas amizades, mas na verdade não amava tanto a escola americana, porque lá dentro me sentia mais estrangeiro do que na rua. De fato, para os meus colegas, eu, um certo Francisco, originário do Brasil, era italiano e me chamava Francesco.

 

Em janeiro de 1969, quando voltei a Roma, reencontrei os monumentos, os palazzi, as fontanne (fontes), os viali (avenidas), tudo ali, tudo igual às minhas recordações, somente um pouco menor. Logo na primeira manhã caminhei pelas ruas da minha infância, certo de poder rever os mesmos personagens de tantos anos atrás, talvez pequeninos eles também. Senti-me porém como o míope de Italo Calvino, encontrando rostos desconhecidos ou cumprimentando gente que não me respondia. À hora do almoço, perdi-me num labirinto perto do Pantheon. Vaguei pelos becos desertos, entre casas amarelas com portas e janelas fechadas, depois me encontrei numa praça com a estátua de um elefante, e à sombra de uma igreja tinha um carabinieri (soldado) que dormia sentado no cavalo. Despertei o carabinieri, porque precisava de uma indicação, mas em seguida permaneci mudo. Vinham-me à mente palavras soltas como Sampdoria, cálcio d’angolo (escanteio), e naquele momento me dei conta de que não sabia mais falar o italiano. Humilhado, voltei ao hotel, onde minha mulher, grávida, falava ao telefone com o Rio de Janeiro. As notícias do Brasil não eram maravilhosas, de modo que minha permanência no exterior, prevista para três semanas, devia se prolongar por uma duração incerta. Estabeleci-me em Roma, deixando o Albergue Raphael por um bairro que parecia mais um subúrbio do Rio.

 

Roma, a sentia agora mais dura, como se suspeitasse de que nela vivia pensando numa outra. Era verdade, mas ao mesmo tempo estava sinceramente decidido a não pensar mais na minha cidade. O meu coração queria pensar em Roma, somente Rom. Gravei um disco em italiano quase sem acento, fui ao rádio e à televisão, cantei no meio da Piazza Navona, mas Roma não me compreendeu. Inventei um samba em dialeto romanesco, mas Roma não é boba. Disse a Roam que no Rio não me queriam, disse-lhe que não podia viver assim no ar, sem uma cidade. Era ridículo, queria desesperadamente que Roma me aceitasse. Então ofereci a Roma minha primogênita.

 

Minha filha Silvia nasceu romana no fim de março, e Roma mandou à Clínica Moscati dois poetas. Vinicius de Morais fez uma enfermeira gravar o primeiro choro da criança. E à mãe ainda adormecida, Giuseppe Ungaretti dizia: ‘Bella, bellla!”. Depois Roma me acolheu no Piazzele Flaminio, num apartamentinho com um balcãozinho de onde se via a Villa Borghese. Dali saía a pé pela Via Del Corso, Piazza Colonna, o Cine Capranica, o Cine Capranichetta e daí pela Vila Tritone, Fontana de Trevi e o restaurante Al Moro, do qual uma noite vi sair Federico Fellini e emudeci, porque e pareceu que viesse a cavalo. Nesta cidade vivi ainda um ano e meio, e aqueles que não podiam ser os temps mais felizes da minha vida. Mas com o consenso de Roma, nela vivi um tempo que, em outra parte, teria sido invivível.

 

Em Flumicino (aeroporto romano), o policial olha a torna a olhar cada folha do meu passaporte, sacode a cabeça, procura o meu nome no computador, chama alguém pelo telefone. Já esperava toda essa operação. Estamos em um país rico e o meu documento é sempre aquele de um cidadão sul-americano. Fecha o passaporte, reabre o passaporte, me observa e observa a foto, na qual nem eu mesmo me reconheço, porque me vejo com a cara do meu pai quando veio ensinar na Universidade de Roma. “Músico” exclama enfim o policial, e de repente se põe a tocar um tambor imaginário. Revela-me que ele também é um contrabaixista diletante, e me restitui o passaporte dizendo-se um fã da nossa música, a música étnica! “Música latina”, acrescenta, e me diverte saber que no coração do Lácio se chama latina uma música tão estranha. Giro afora pelo aeroporto que não recordava tão grande. Depois de 30 anos o ampliaram, sem dúvida, mas é possível também que com o tempo os objetos da memória comecem a comprimir-se, como se estivessem dentro de um ônibus superlotado. Quando consigo pegar minha maleta, que rodava também solitária no aeroporto, me vejo diante de uma jovem com um sorriso que me é familiar. É uma signorina tão viçosa, tão luminosa, com a pele tão clara, os cabelos tão negros, os olhos tão grandes, que poderia ser uma professoressa de italiano. Mas ao contrário é a agente de turismo que me pergunta: ‘may I help you?’. No grazie, le dico, Il mio nome éFrancesco.

 

(sem data, sem fonte...achei entre papéis num caixa... Denise)

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