domingo, 22 de fevereiro de 2009

Carta a uma senhorita em Paris

Andrée, eu não queria vir morar em seu apartamento da Rua Suipacha. Não tanto pelos coelhinhos, mas porque me desagrada entrar em uma ordem fechada, já construída até nas mais finas malhas do ar, essas que em sua casa preservam a música da lavanda, o adejar de um cisne com pós, o dueto de violino e viola no quarteto de Rará. Para mim é difícil entrar em um ambiente onde alguém que vive confortavelmente dispôs tudo como uma reiteração visível de sua alma, aqui os livros (de um lado em espanhol, do outro francês e inglês), ali os almofadões verdes, neste exato lugar da mesinha o cinzeiro de cristal que parece a metade de uma bolha de sabão, e sempre um perfume, um som, um crescer de plantas, uma fotografia de amigo morto, ritual de bandejas com chá e pinças de açúcar... Ah, querida Andrée, como é difícil opor-se, embora aceitando-a com inteira submissão do próprio ser, à minuciosa ordem que uma mulher instaura em sua agradável residência. Como é condenável pegar uma tacinha de metal e pô-la na outra extremidade da mesa, pô-la ali simplesmente porque alguém trouxe seus dicionários de inglês e é deste lado, ao alcance da mão, que deverão estar. Mexer nessa tacinha vale por um horrível vermelho inesperado em meio a uma modulação de Ozenfant, como se de repente as cordas de todos os contrabaixos rebentassem ao mesmo tempo com a mesma espantosa chicotada no instante mais suave de uma sinfonia de Mozart. Mexer nessa tacinha altera o jogo de relações de toda a casa, de um objeto com outro, de cada momento de sua alma com a alma inteira da casa e sua distante moradora. E eu não posso aproximar os dedos de um livro, ajustar de leve o cone de luz de um lampião, abrir a tampa da caixa de música, sem que um sentimento de ultraje e desafio me passe pelos olhos como um bando de pardais.



Você sabe por que vim a sua casa, a seu tranqüilo salão festejado do sol. Tudo parece tão natural, como sempre que não se sabe a verdade. Você foi a Paris, eu fiquei com o apartamento da Rua Suipacha, elaboramos um simples e satisfatório plano de mútua conveniência, até que setembro a traga de novo a Buenos Aires e me atire a alguma outra casa onde talvez... Mas não lhe escrevo por isso, escrevo esta carta por causa dos coelhinhos, me parece justo informá-la; e porque gosto de escrever cartas, e talvez porque chove.



Mudei-me na quinta-feira passada, às cinco da tarde, entre névoa e tédio. Fechei tantas malas em minha vida, passei tantas horas preparando bagagens que não levava a parte nenhuma, que aquela quinta-feira foi um dia cheio de sombras e correias, porque quando vejo as correias das malas é como se visse sombras, partes de um látego que me açoita indiretamente, de maneira mais sutil e mais horrível. Mas fiz as malas, avisei sua criada que viria me instalar aqui, e subi de elevador. Precisamente entre o primeiro e o segundo andar, senti que ia vomitar um coelhinho. Nunca lhe contara antes, não pense, porém, que por deslealdade, mas naturalmente a gente não vai ficar explicando aos outros que, de quando em quando, vomita um coelhinho. Como isto me sucedia estando só, escondia o fato como se escondem tantos detalhes do que acontece (ou a gente faz acontecer) na intimidade total. Não me censure, Andrée, não me censure. De quando em quando me acontece vomitar um coelhinho. Não é razão para não viver em qualquer casa, não é razão para que a gente deva se envergonhar e estar isolado e andar se calando.



Quando sinto que vou vomitar um coelhinho, ponho dois dedos na boca como uma pinça aberta, e espero sentir na garganta a penugem morna que sobe como uma efervescência de sal de frutas. Tudo é rápido e higiênico, transcorre em um brevíssimo instante. Tiro os dedos da boca, e neles trago preso pelas orelhas um coelhinho branco. O coelhinho parece contente, é um coelhinho normal e perfeito, só que muito pequeno, pequeno como um coelhinho de chocolate, mas branco e completamente um coelhinho. Ponho-o na palma da mão, levanto sua penugem com uma carícia dos dedos, o coelho parece satisfeito de haver nascido e bole e esfrega o focinho na minha pele, movimentando-o com essa trituração silenciosa e cosquenta do focinho de um coelho contra a pele de uma mão. Queria comer, e eu (falo de quanto isto acontecia em minha casa de campo) o levo comigo à varanda e ponho-o no grande vaso onde cresce o trevo que plantei para esse fim. O coelhinho levanta bem suas orelhas, envolve o trevo novo com um veloz molinete do focinho, e eu sei que posso deixá-lo e ir embora, continuar por algum tempo uma vida não diferente da de tantos que compram seus coelhos nas granjas.



Entre o primeiro e o segundo andar, Andrée, como um aviso de como seria minha vida em sua casa, soube que ia vomitar um coelhinho. Em seguida tive medo (ou era surpresa? Não, medo da própria surpresa, talvez), porque antes de deixar minha casa, só dois dias antes, tinha vomitado um coelhinho e estava livre por um mês, cinco semanas, talvez seis com um pouco de sorte. Veja você, eu tinha resolvido completamente o problema dos coelhinhos. Plantava trevo na varanda da minha outra casa, vomitava um coelhinho, punha-o no trevo e, ao fim de um mês, quando suspeitava que de um momento para outro... então dava o coelho já crescido à Sra. de Molina, que imaginava um hobby meu e não dizia nada. Já em outro vaso vinha crescendo um trevo novo e oportuno, eu esperava despreocupado a manhã em que a cosquinha de uma penugem subindo me fechava a garganta, e o novo coelhinho repetia desde aquele momento a vida e os costumes do anterior. Os costumes, Andrée, são formas concretas do ritmo, são a quota de ritmo que nos ajuda a viver. Não era tão horrível vomitar coelhinhos, uma vez que isso havia entrado no ciclo invariável, no método. Você há de querer saber por que todo esse trabalho, por que todo esse trevo e a Sra. de Molina. Teria sido preferível matar imediatamente o coelhinho e... Ah, você teria que vomitar um que fosse, pegá-lo com dois dedos e colocá-lo na mão aberta, ainda aderido a você pelo próprio ato, pela aura inefável de sua proximidade recém-partida. Um mês distancia tanto; um mês é tanto, pêlos compridos, saltos, olhos selvagens, diferença absoluta. Andrée, um mês é um coelho, faz de verdade um coelho; mas o minuto inicial, quando o floco morno e buliçoso encobre uma presença inconfundível... Como um poema nos primeiros minutos, o fruto de uma noite de Iduméia: tão da gente que a gente mesmo... e depois tão não a gente, tão isolado e distante em seu raso mundo branco tamanho mapa.



Decidi, contudo, matar o coelhinho mas nascesse. Eu viveria quatro meses em sua casa: quatro - talvez, com sorte, três - colheradas de álcool no focinho. (Você sabe que a misericórdia permite matar instantaneamente um coelhinho dando-lhe de beber uma colherada de álcool? Sua carne então sabe melhor, dizem, embora eu... Três ou quatro colheradas de álcool, em seguida o banheiro ou um pacote se somando ao lixo.)



Ao passar pelo terceiro andar o coelhinho se mexia em minha mão aberta. Sara esperava em cima, para me ajudar a entrar com as malas... Como lhe explicar que um capricho, uma casa que vende animais? Embrulhei o coelhinho no meu lenço, coloquei-o no bolsinho do sobretudo, deixando-o desabotoado para não espremê-lo. Mal se mexia. Sua miúda consciência devia estar revelando fatos importantes: que a vida é um movimento para cima com um clique final, e que é também um céu baixo, envolvente e cheirando a lavanda, no fundo de um poço morno.



Sara não viu nada, fascinava-a o muito duro problema de ajustar o seu sentido de ordem a minha mala-roupeiro, meus papéis e minha displicência diante de suas elaboradas explicações, em que abunda a expressão "por exemplo". Tão logo pude, me fechei no banheiro; matá-lo agora. Uma fina zona de calor rodeava o lenço, o coelhinho era branquíssimo e acho que mais lindo que os outros. Não me olhava, apenas bulia e estava contente, o que era o mais horrível modo de olhar. Encerrei-o no pequeno armário vazio e voltei-me para desfazer as malas, desorientado mas não infeliz, mas culpado, não ensaboando as mãos para tirar delas uma última convulsão.



Compreendi que não podia matá-lo. Mas nessa mesma noite vomitei um coelhinho negro. E dois dias depois um branco. E na quarta noite um coelhinho cinza.



Você deve amar o belo armário do seu quarto, com aquela grande porta que se abre generosa, as prateleiras vazias à espera da minha roupa. Guardo-os ali agora. Ali dentro. Verdade que parece impossível; nem Sara acreditaria. Porque Sara não desconfia de nada, e o fato de que não desconfie de nada se deve a minha horrível tarefa, uma tarefa que consome meus dias e minhas noites num só golpe de rastelo e vai me queimando por dentro e endurecendo como aquela estrela-do-mar que você pôs na banheira e que a cada banho parece encher o corpo da gente de sal e açoites do sol e grandes rumores da profundidade.



De dia dormem. São dez. De dia dormem. Com a porta fechada, o armário é uma noite diurna só para eles, e lá eles dormem sua noite com sossegada obediência. Levo comigo as chaves do quarto ao sair para o trabalho. Sara deve pensar que ponho em dúvida a honradez dela e me olha desconfiada, noto todas as manhãs que está por me dizer alguma coisa, mas por fim se cala, e eu fico muito contente... (Quando arruma o quarto, das nove às dez, faço ruído na sala, ponho um disco de Beny Carter que toma todo o ambiente, e como Sara é também amiga de saetas e pasodobles, o armário parece silencioso e talvez esteja mesmo, porque para os coelhinhos agora é noite e hora de descanso.)



O dia deles principia nessa hora que vem depois do jantar, quando Sara leva a bandeja com um miúdo tilintar de pinças de açúcar, me deseja boa-noite - sim, deseja, Andrée, o mais triste é que me deseja boa-noite ¿ e se fecha em seu quarto e imediatamente estou só, só com o maldito armário, só com meu dever e minha tristeza.



Deixo-os sair, se lançaram ágeis ao assalto do salão, cheirando lépidos o trevo que meus bolsos ocultavam e agora faz no tapete efêmeras rendas que eles alteram, removem e acabam num instante. Comem bem, calados, corretos, até esse instante nada tenho a dizer, só os olho do sofá, com um livro inútil na mão - eu que queria ler todos os seus Giraudoux, Andrée, e a história argentina de López que você tem na prateleira mais baixa -; e comem o trevo.



São dez. Quase todos brancos. Levantam a morna cabeça para as lâmpadas do salão, os três sóis imóveis do seu dia, eles que amam a luz porque sua noite não tem lua nem estrelas nem lampiões. Olham seu triplo sol e estão contentes. Por isso, pulam no tapete, pelas cadeiras, dez suaves manchas se movimentam como uma constelação móvel, de um lado para outro, embora eu quisesse vê-los quietos, vê-los a meus pés e quietos - um pouco o sonho de todo deus, Andrée, o sonho jamais realizado dos deuses - não assim, se insinuando atrás do retrato de Miguel de Unamuno, à volta do grande jarro verde-claro, pela negra cavidade da escrivaninha, sempre menos de dez, sempre seis ou oito, e eu me perguntando onde andarão os dois que faltam, e se Sara se levantasse por qualquer coisa, e a Presidência de Rivadavia que eu queria ler na história de López.



Não sei como resisto, Andrée. Você recorda que vim descansar em sua casa. Não tenho culpa se de quando em quando vomito um coelhinho, se esta mudança me alterou também por dentro - não é nominalismo, não é magia, é apenas que as coisas não podem mudar assim de repente, às vezes as coisas mudam brutalmente e quando a gente esperava a bofetada à direita. Assim, Andrée, ou de outra maneira, mas sempre assim.



Escrevo-lhe de noite. São três da tarde, mas escrevo na noite deles. De dia dormem. Que alívio este escritório coberto de gritos, ordens, máquinas Royal, vice-presidentes e mimeógrafos! Que alívio, que paz, que horror, Andrée! Agora me chamam ao telefone, são os amigos que se inquietam com minhas noites recolhidas, é Luís que me convida a caminhar ou Jorge que reservou entradas para um concerto. Quase não me atrevo a lhes dizer que não, invento prolongadas e ineficazes histórias de má saúde, de traduções atrasadas, de evasão. E quando retorno e subo de elevador - aquela passagem, entre o primeiro e o segundo andar - renovo noite a noite irremediavelmente a vã esperança de que não seja verdade.



Faço o que posso para que não destrocem suas coisas. Roeram pouco os livros da prateleira mais baixa, você os encontrará dissimulados para que Sara não note. Você gostava muito do lampião com o ventre de porcelana cheio de borboletas e antigos cavalheiros? O trincado mal se percebe, trabalhei toda noite com uma cola especial que me venderam em uma casa inglesa - você sabe que as casas inglesas têm as melhores colas - e agora fico ao lado dele para que nenhum dos coelhos o alcance outra vez com as patas (é quase belo ver como gostam de se pôr em pé, lembrança do humano distante, talvez a imitação de seu deus deambulando e os olhando carrancudo; além disso você terá percebido - em sua infância, talvez - que se pode deixar um coelhinho em penitência contra a parede, de pé, as patinhas apoiadas e muito quieto horas a fio).



Às cinco da manhã (dormi um pouco, estendido no sofá verde, e acordando a cada corrida aveludada, a cada tilintar) eu os ponho no armário e faço a limpeza. Por isso Sara encontra tudo em ordem, embora às vezes eu tenha notado nela algum espanto contido, um estar olhando um objeto, uma leve descoloração do tapete, e de novo o desejo de me perguntar alguma coisa, mas eu, assoviando as variações sinfônicas de Franck, faço que nem é comigo. Para que lhe contar, Andrée, as minúcias desventuradas desse amanhecer surdo e vegetal, em que caminho entredormido levantando cabos de trevo, folhas soltas, pêlos brancos, aos encontrões nos móveis, louco de sono, e meu Gide que se atrasa, Troyat que não traduzi, e minhas respostas a uma senhora distante que já estará se perguntado se...? Para que continuar com tudo isto, para que continuar esta carta que escrevo entre telefones e entrevistas.



Andrée, querida Andrée, meu consolo é que são dez e não virão mais. Faz quinze dias que segurei na palma da mão um último coelhinho, depois nada, são só aqueles dez que estão comigo, sua diurna noite e agora crescendo, agora feios e nascendo o pêlo comprido, agora adolescentes e cheios de necessidades e caprichos, saltando sobre o busto de Antínoo (é Antínoo, de fato, aquele rapaz que olha cegamente?) ou se perdendo no living onde seus movimentos criam ruídos ressonantes, tanto que dali devo tirá-los, com medo de que Sara os ouça e apareça horripilada, talvez de camisola - porque Sara deve ser assim, com camisola - e então... Somente dez, pense você que nessa pequena alegria que sinto, em meio a tudo isso, a crescente calma com que ultrapasso de volta os rígidos tetos do primeiro e do segundo andar.



***

Interrompi esta carta porque devia participar de um trabalho de comissões. E a continuo aqui em sua casa, Andrée, sob uma silenciosa grisalha de amanhecer. É o mesmo dia seguinte, Andrée? Um pedaço em branco da página será para você o intervalo, apenas a ponte que une a minha letra de ontem à minha letra de hoje. Dizer-lhe que nesse intervalo tudo terminou, onde você vê a ponte livre eu vejo quebrar-se a cintura furiosa da água, para mim este lado do papel, este lado da minha carta não continua a calma com que eu vinha escrevendo, quando eu a deixei para participar de um trabalho de comissões. Em sua cúbica noite sem tristeza dormem onze coelhinhos; talvez agora mesmo, mas não, não agora ¿ No elevador, logo, ou ao entrar; não importa mais onde, se o quando é agora, se pode ser em qualquer agora dos que me restam.



Agora chega, escrevi isto porque me interessa provar-lhe que não fui tão culpado na destruição inevitável de sua casa. Deixarei esta carta à sua espera, seria sórdido que o Correio a entregasse a você em alguma clara manhã de Paris. Na noite passada virei os livros da segunda estante; eles já os alcançavam, ficando de pé ou saltando, roeram as lombadas para afiar os dentes ¿ não por fome, têm todo o trevo que compro e armazeno para eles nas gavetas da escrivaninha. Rasgaram as cortinas, os forros das poltronas, a moldura do auto-retrato de Augusto Torres, encheram de pêlos o tapete e também gritaram, estiveram dando voltas sob a luz do lustre, em círculo e como que me adorando, e então gritavam, gritavam como eu não acredito que os coelhos gritem.



Quis em vão tirar os pêlos que enfeiam o tapete, aparar as beiras da fazenda roída, encerrá-los de novo no armário. O dia sobe, talvez Sara se levante logo. É quase estranho que Sara não me importe. É quase estranho que não me importe de vê-los saltar em busca de brinquedos. Não tive tanta culpa, você verá quando chegar que muitos dos destroços estão bem reparados com a cola que comprei em uma casa inglesa, eu fiz o que pude para lhe evitar um desgosto... Quanto a mim, do dez ao onze há como um vazio insuperável. Você vê: dez estava bem, com um armário, trevo e esperança, quantas coisas se podem construir. Mas não com onze, porque dizer onze é certamente dizer doze, Andrée, doze que será treze. Então há o amanhecer e uma fria solidão na qual cabem a alegria, as recordações, você e talvez tanta coisa mais. Há esta sacada sobre Suipacha cheia de aurora, os primeiros sons da cidade. Não acredito que lhes seja difícil juntar onze coelhinhos salpicados sobre os paralelepípedos, talvez nem os notem, atarefados com o outro corpo que convém levar logo, antes que passem os primeiros colegiais.


[Encontro Janeiro 2009 coordenação: Dan]

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