domingo, 22 de fevereiro de 2009

A tartaruga

 Tinha acordado às cinco da manhã, e resolvera pescar durante algumas horas. Remei no bote até o barco, naquela linda manhã enevoada, e dirigi-me às águas turbulentas de West Chop. Antes de alcançar o lago Tashmoo, achei a corredeira mais calma onde os linguados abundavam, pus duas linhas na água e fiz café. Sempre me sinto feliz como uma criança quando estou sozinha num barco, sem ver ninguém, até que o dia clareie. Tendo pescado nove linguados e mais uns dois peixes que Helen gostaria para um cozido, resolvi nadar antes de voltar para casa e para o trabalho. O barco flutuara até a marola mais forte, mas isso não era novidade, e eu nunca me descuidava: amarrava uma pedra de um quilo a uma corda comprida, descia a escada do barco com ela e a carregava para o lugar onde ia nadar. Não sei quanto tempo levei para perceber que não estava nadando, mas sendo arrastada com uma velocidade incrível por uma correnteza que nunca observara antes. Naturalmente o barco tinha se movido comigo, mas um vento forte do lago o estava afastando da corredeira rasa para águas profundas. Não havia o que decidir: não conseguiria nadar até o barco, pois não poderia vencer a força da corrente. Pouco me lembro do período que se seguiu, exceto de que me voltei para boiar, consciente de que nem sempre o pânico se parece com as descrições que fazem dele. Durante algum tempo fiquei rígida, a água lambendo-me o rosto; depois relaxei e tentei perceber para onde a água me levaria. Mas quando me virei para erguer a cabeça, afundei, e ao voltar à tona outra vez já não me importava que não pudesse avistar a margem, pensando que a água era o meu elemento, e que não seria uma forma ruim de morrer, desde que tivesse o bom senso de me entregar tranquilamente, sem uma luta que só me faria sofrer. E então, não sei quando, bati com a cabeça no cais de West Chop, abracei-me a um dos mourões e lembrei-me de nós três, e de uma conversa que tínhamos tido quatro dias depois da morte da tartaruga, e na qual eu dissera a Hammett:

            - Vocês dois se compreendiam. Ela era uma sobrevivente como você. Mas, e eu?

            Não respondera, e por isso à noite tinha repetido a pergunta.

            - Não sei – disse ele – talvez você seja, talvez não. De que adianta a minha opinião?

            Agarrada à estaca, estava eu conversando com um homem que morrera havia cinco anos, sobre uma tartaruga que morrera fazia vinte e seis.

            Mesmo nos dias de 1940, era um dos últimos grandes terrenos daquela região de Westchester County. Eu o tinha visto numa terça-feira e comprara-o na quinta, com os direitos autorais de The Little Foxes, sabendo, e não me importando, que não sobraria dinheiro suficiente para pagar a comida da semana. Chamavam-na uma ‘propriedade’, mas a casa era tão contraditoriamente modesta, em comparação com os grandes jardins formais no estilo do século XIX, que imediatamente se ficava interessada na família que a possuíra por cento e vinte anos e que, segundo o corretor, havia desaparecido. (Isso não era verdade: oito ou nove anos mais tarde, um rapaz de dezesseis ou dezessete anos viera perguntar se podia ver a casa e fazer um piquenique no lago. Tinha dito que nascera ali, e levara um grande galho de espinheiro alvar que a mãe tinha plantado para comemorar seu nascimento.)

            Nas primeiras semanas, fechei as duas casas de hóspedes e resolvi esquecer as cercas vivas, plantas raras e alamedas, e quando Hammett vendeu dois contos, pintamos a casa, arrumamos um lugar onde eu pudesse trabalhar e consertamos o estábulo.

Queria utilizar a terra, e não dei ouvidos quando me preveniram contra o solo duro e rochoso. Contratei Fred Herrmann, um jovem fazendeiro alemão, porque tive a intuição imediata de que seu temperamento era semelhante ao meu, e juntos, anos a fio, chegamos ao extremo da exaustão em um trabalho que começava às seis da manhã e só terminava à noite. Muitos dos nossos planos fracassaram, mas alguns tiveram êxito: criamos e vendemos poodles que estavam muito em moda na época, até termos bastante lucro para comprarmos galinhas; com o dinheiro ganho no roteiro de The Little Foxes para o cinema compramos gado e três mil mudas de aspargos que clareávamos e vendíamos a bons preços. Hibridamos patos dos quais ninguém gostava, exceto eu, enchemos o lago de percas, criamos ótimos porcos, ganhamos muito dinheiro com eles e o perdemos com os faisões; recuperamos algum com os primeiros tomates graúdos, a venda de ovelhas, e de leite gordo e sem pasteurização. Mas tudo isso foi nos bons tempos, antes que tivesse de me desfazer do sítio porque, durante o macarthismo, Hammett foi preso, e eu banida de Hollywood, depois de ter sido chamada a depor perante o Comitê de Atividades Antiamericanas. O tempo em que só fazia o que gostava acabou-se em 1952.

            Minhas lembranças sobre aqueles dias são com uma selva: coisas que aprendi e esqueci, ou que recordava pela metade, o que é pior do que esquecer de todo. Parece-me que houve época em que entedia muito de árvores, pássaros, flores silvestres, hortaliças e alguns animais; sabia fazer manteiga, queijo e lingüiça; como tirar o gosto de lama das percas de grandes bocas, e como fazer as pessoas passarem mal com as ervas que colhia e fervia, de acordo com todos aqueles livros que dizem que isso é possível. Os elegantes Gerald e Sarah Murphy ficaram muito enjoados com o repolho-gambá cujo cheiro tinha disfarçado com uma receita do século XVIII.

            Porém, o dia do qual mais me lembro, foi na primavera que passei na propriedade, logo após tê-la comprado. As alamedas estavam limpas da neve e, tendo terminado o trabalho das manhãs nos estábulos, levei Salud, o poodle grande, e quatro dos seus filhotes, para uma caminhada matinal até o lago. Ao atingirmos a pequena colina densamente arborizada em frente à água, Salud parou, virou-se bruscamente e correu para a mata, e depois voltou de marcha-à-ré para a estrada, bem devagar. Os filhotes e eu passamos por ele em direção ao lago, e assoviei, crente que tinha sido atraído por alguma marmota. Mas quando olhei para trás, estava imóvel naquele caminho, como se tivesse inspirado fundo e ainda prendesse a expiração. Chamei-o, porém não se mexeu. Chamei novamente, num tom de comando a que jamais deixara de atender. Fez um movimento de obediência com a cabeça e as pernas dianteiras, fitou-me e voltou-se. Nunca tinha visto um cachorro paralisado, e ao caminhar até onde ele estava, lembrei-me das velhas histórias sobre serpentes e a fascinação que elas exercem sobre todos. Parei, a fim de apanhar um pau grosso e uma pedra, com medo de encontrar alguma cobra. Salud latiu de novo de modo estranho e eu atirei a pedra por cima da cabeça dele, gritando para que me acompanhasse. Quando a pedra atingiu o solo, houve um movimento pesado, bem em frente ao cão. Certa de que era uma cobra pronta a dar o bote, corri para Salud, agarrei-o pela coleira e tropecei com o peso dele. Livrando-se de mim, o cão avançou lentamente na direção do som. Ao levantar-me, vi uma carapaça redonda, de cerca de um metro, passar por ele e avançar sem pressa para a água. Era uma tartaruga enorme.

            Salud seguiu cautelosamente a tartaruga, e enquanto eu permanecia parada, atônita com as figuras do cão e da carapaça que se movimentava vagarosamente, o cachorro saltou diante da tartaruga, estendeu uma pata, e então os maxilares do quelônio fecharam-se sobre a sua perna. Primeiro Salud não emitiu nenhum som, mas depois se levantou sobre as pernas traseiras e soltou um urro de dor que não se assemelhava a nada que eu já tivesse ouvido. Não sei quanto tempo levei para agir, mas bati com o pau na cauda da tartaruga, com toda a força, e ela desapareceu na água. A perna de Salud estava horrível, mas ele era grande demais para que eu pudesse carregá-lo; corri para casa à procura de Fred, e nós dois o levamos para o veterinário. Uma semana depois, já estava bem o suficiente para mancar pelo resto da vida.

            Hammett estava passando algumas semanas na Califórnia, e por isso eu ia sozinha ao lago quase todos os dias, na tentativa de ver a tartaruga de novo, lembrando-me de que, quando era garota em New Orleans, todos os sábados acompanhava minha tia ao mercado francês a fim de comprar suprimentos para a pensão dela. Eu conhecera no mercado dois açougueiros cujos polegares haviam sido decepados pelas tartarugas que limpavam.

            Hammett voltou para a fazenda e ficou penalizado e aborrecido ao ver que seu cachorro favorito estava aleijado. Disse que sempre soubera que havia aquele tipo de tartaruga no lago, e cobras também, mas que agora achava que devíamos tomar alguma providência; assim, iniciou a busca com sua meticulosidade habitual. Passamos semanas comprando livros e publicações oficiais que ensinavam a fazer armadilhas para tartarugas, e assim começaram a chegar os embrulhos mais esquisitos: grandes gaiolas de arame farpado, para fins diferentes, e contempladas durante dias, até que Hammett se decidisse por algumas modificações; cordas extraordinariamente fortes e delgadas; e um livro que mostrava como fazer nós. Ambos lemos sobre a origem das tartarugas cortadoras, mas não me parecia que aqueles relatos ensinassem muita coisa sobre elas: aventavam a hipótese de que pertenciam a mais antiga das espécies vivas que não tinham sofrido alterações, e diziam que seus maxilares eram muito fortes e representavam grande risco para um inimigo; que elas não podiam fazer nada se viradas de barriga para cima; e explicavam por que a minha tartaruga tinha saído da mata: na primavera, a fêmea punha ovos em terra, chocava-os todos os dias, e entregava ao acaso a possibilidade de que os filhotes recém-nascidos achassem o caminho para a água.

            Um dia, talvez um mês depois, já que não havia como apressar Hammett quando resolvia aprender alguma coisa, fomos até o lago carregando as gaiolas de arame, anzóis gigantescos, cabeças de peixe, e pedaços de carne malcheirosa que fora exposta ao sol uns dias antes. Como sempre acontecia, fiquei entediada com a lenta precisão que caracterizava tudo quanto Dash fazia, e comecei a andar pela margem do lago, enquanto ele prendia as iscas no interior das armadilhas, iscava os anzóis e remava com elas à procura de galhos fortes e pendentes onde pudesse amarrá-las.

            Tinha terminado o trabalho em um dos lados do lago, e remara para a margem sul, onde não podia vê-lo, quando resolvi nadar um pouco. Avançava devagar em direção à balsa, quando descobri que um dos galhos de caneleira estava balançando desordenadamente acima da água, a certa distância de mim. Sentada na balsa, fiquei observando, até que concluí que o movimento era causado pela linha presa a um dos anzóis que Hammett amarrara à árvore. Gritei para ele que apanhara uma tartaruga, e ele respondeu que aquilo não podia acontecer tão rápido, mas gritei novamente que viesse me pegar depressa e sem discutir, porque estava com medo.

            Quando surgiu da curva do lago, sorria.

            - Já está bêbada a essa hora?

            Apontei para o galho que balançava. Esqueceu-se de mim e remou velozmente para lá. Vi-o puxar a linha sem conseguir levantá-la, ficar de pé no barco, puxar outra vez, e depois deixá-la cair bem devagar. Remou de volta à balsa.

            - É uma tartaruga mesmo. Venha. Preciso de ajuda.

            Segurei os remos, enquanto ele se punha de pé para soltar a linha da árvore. Estava tão pesada, que quando foi prendê-la à popa do barco, quase caiu para trás. Restituí-lhe o equilíbrio, plantando-lhe um remo bem no meio das costas.

            Encarou-me, massageando-as.

            - Lembre-me – disse, e amarrou a linha à popa.

            - Lembrar você de quê?

            - De que nunca vou querer que me salve. Há muito tempo estava pretendendo lhe dizer isso.

            Quando chegamos à praia ele soltou a corda, e começou a puxá-la para a terra. Uma tartaruga, maior do que aquela que vira com Salud, foi arrastada para fora da água e saltei para trás quando ela esticou a cabeça bruscamente. Dash inclinou-se, agarrou-lhe a cauda e virou-a de barriga para cima.

            - O anzol penetrou bem. Vai agüentar. Volte e traga o carro para mim.

            - Não gosto de deixar você sozinho, não devia estar mexendo nessa coisa... – relutei.

            - Ande – insistiu ele. – Uma tartaruga não é uma mulher. Ficarei a salvo.

            Levamos a tartaruga para casa amarrada ao pára-choque traseiro, rebocando-a pela estrada de terra no quilômetro e meio que separava a casa do lago. Dash foi buscar um machado no depósito de ferramentas e voltou com ele mais uma ripa comprida e resistente. Desvirou a tartaruga, deu-me a ripa, e recomendou:

            - Fique bem afastada, estique a vara, e espere até que ela a abocanhe.

            Fiz o que mandava, a tartaruga abocanhou, e o machado desceu. Mas Dash não acertou porque a tartaruga, ao ver-lhe o braço, recolheu rapidamente a cabeça. Tentamos mais cinco ou seis vezes. O dia estava quente e pensei que devia ser por isso que estava suando, mas a verdade é que nunca me sentia à vontade com Hammett quando ele estava fazendo alguma coisa que não dava certo.

            Estiquei o pau, o animal não pegou e depois pegou e, enquanto isso, pus minha mão um pouco mais para baixo achando que podia segurá-lo melhor assim. A tartaruga soltou-o, e fez o movimento mais rápido que eu já vira, para atingir a minha mão. Recuei num pulo, e a ripa arranhou a minha perna. Hammett largou o machado, tomou-me a vara e ordenou:

            - Vá se deitar.

            Respondi que não ia, e ele retrucou que eu tinha que ir para algum lugar para sair de seu caminho. Disse também que não faria aquilo, e que estava de mau humor porque não conseguia matar a tartaruga com o machado.

            - Vou dar uns tiros nela. Mas não é por isso que estou aborrecido. Há muito tempo que precisamos conversar, você e eu.

            - Fale agora.

            - Não, estou ocupado. Quero que saia do meu caminho.

            Pegou-me pelo braço, levou-me até os degraus da cozinha, obrigou-me a sentar e entrou em casa para apanhar o rifle. Quando voltou, pôs um pedaço de carne diante da cabeça da tartaruga e colocou-se atrás dela. Esperamos muito tempo. Finalmente a cabeça se mostrou para procurar a carne e a arma de Hammett disparou. O tiro foi uma beleza, apenas um pouquinho atrás dos olhos. Corria para lá quando a cabeça do animal teve um movimento convulsivo para a frente, e os pés se adiantaram, numa espécie de pulo desajeitado. Abaixei-me perto dela e Hammett avisou-me:

            - Não se aproxime muito. Não está morta.

            Apanhou então o machado e abateu-o com força sobre o pescoço do quelônio, cortando-lhe a cabeça, que ficou presa apenas pela pele.

            - É estranho – disse ele. – O tiro atravessou-lhe o cérebro, e no entanto, não a matou. Muito estranho.

            Agarrando a tartaruga pela cauda, subiu com ela o comprido lance da escada que levava à cozinha. Arranjamos algumas folhas de jornal e pusemos a tartaruga sobre o fogão a carvão que não usávamos muito, exceto quando era tempo de fazer lingüiça.

            - Agora vamos ter que aprender a cortá-la para fazer sopa. – observei.

            Dash concordou.

            - Certo. Mas é um trabalho demorado. Vamos esperar até amanhã.

            Helen estava de folga e tinha ido a New York, mas deixei um bilhete por debaixo da porta do quarto dela, avisando-a de que havia uma tartaruga deitada no fogão, mas que não se assustasse. Depois telefonei a minha tia Jenny em New Orleans para que me desse a deliciosa receita de sopa de tartaruga da minha infância e ela retrucou dizendo que eu me afastasse das tartarugas e voltasse aos bordados finos, como uma senhora que se preza.

            Na manhã seguinte, ao me levantar às seis para ajudar Fred a ordenhar as vacas, nem pensei na tartaruga, até que comecei a descer os degraus da escada da cozinha e vi o sangue. Porém, julgando que era o mesmo que tinha sido derramado na noite anterior, segui para os estábulos. Às oito horas, quando voltei, Helen perguntou o que queria para o café da manhã, acrescentando que fizera pão de milho, e que história era aquela de uma tartaruga em cima do fogão?

            Ia subindo para tomar um banho e respondi:

            - Exatamente o que disse. Tem uma tartaruga em cima do fogão, e desde criança você deve saber que há tartarugas que abocanham tudo.

            Passados alguns minutos ela subiu para me olhar fixamente na banheira.

            - Não há tartaruga nenhuma. Mas está tudo sujo de sangue.

            - Em cima do fogão a carvão – disse. – Desça e dê uma olhada.

            - Dei muitas olhadas. Não há tartaruga nenhuma em cima do fogão desta casa.

            - Vá acordar o Sr. Hammett – disse. – Imediatamente.

            - Não gostaria de ter que fazer isso – relutou. – Não gosto de acordar homens.

            Desci correndo até a cozinha, e depois voltei para cima a toda velocidade, entrei no quarto de Hammett e sacudi-o com força.

            - Levante-se já. A tartaruga desapareceu.

            Ele voltou-se para me olhar.

            - Você bebe demais de manhã.

            - A tartaruga desapareceu – repeti.

            Em poucos minutos ele estava na cozinha, olhando para o fogão. Disse para Helen:

            - Você limpou o chão?

            - Limpei – respondeu. – Estava uma sujeira danada. Olhe para os degraus.

            Dash examinou os degraus que iam para a adega e levavam ao gramado lá fora. Depois desceu lentamente, seguindo a trilha de gotas de sangue até o pomar. Perto, plantado muitos anos antes que comprasse a casa, havia um jardim entre pedras, mais de quarenta metros quadrados de árvores e plantas raras, que se elevavam numa subida íngreme, até a entrada da casa. Hammett dirigiu-se para lá, seguindo a trilha que circundava o pomar.

            - Uma vez, quando trabalhava para Pinkerton, achei uma roda gigante que tinha sido roubada de um parque de diversões ambulante – disse. – Depois perdi-a de novo, e até onde sei, nunca mais ninguém a encontrou.

            - Uma tartaruga não é uma roda gigante. Alguém a levou – repliquei.

            - Quem?

            - Não sei. Tem alguma teoria?

            - A tartaruga saiu sozinha.

            - Não gosto do que está dizendo. A noite passada estava morta. Completamente.

            - Olhe – disse ele.

            Apontava para o jardim de pedras. Salud e três filhotes de poodle estavam sentados sobre uma rocha grande, sem desviar os olhos de uma moita. Corremos para o jardim. Hammett mandou que os filhotes saíssem e separou os galhos da moita. A tartaruga, inclinada para um lado, no esforço para se movimentar, estava procurando sair dali, com a cabeça pendurada por um pedaço de pele do pescoço.

            - Meu Deus – dissemos juntos, e ficamos olhando as tentativas do animal durante o enorme espaço de tempo que levou para afastar-se alguns centímetros de nós. Então parou, e suas pernas traseiras enrijeceram. Salud, quieto até aquele momento, pulou imediatamente sobre ela, e dois filhotes, latindo, o imitaram. Salud lambeu o sangue da cabeça, e a tartaruga mexeu a patas dianteiras. Agarrei Salud pela coleira e joguei-o contra uma pedra com demasiada força.

            - A tartaruga não pode mordê-lo mais. Está morta – disse Hammett.

            - Como sabe? perguntei.

            Ele segurou o animal pela cauda.

            - Que vai fazer?

            - Levá-la de volta à cozinha.

            - Não. Vamos levá-la para o lago. Merece viver.

            - Morreu. Está morta desde ontem.

            - Não. Ou talvez estivesse morta e agora não está mais.

            - A ressurreição? Para uma ex-católica, você é uma mulher muito estranha – disse ele, afastando-se.

            Estava atrás dele quando entrou na cozinha e jogou a tartaruga na mesa de mármore. Ouvi a exclamação de Helen:

            - Deus do céu! Que o bom Senhor nos ajude a todos!

            Hammett apanhou uma das facas de carne. Movia os lábios, como se recapitulasse o que tinha lido. Separou a carne da perna, da carapaça, cortando habilmente em torno das juntas. Quando a faca penetrou, a outra perna mexeu-se.

            Helen saiu da cozinha e eu disse:

            - Você sabe muito bem que ajudo a cortar os animais e não gosto da conversa de pessoas que dizem que matar é horrível, mas que estão prontas a comer o que é abatido e morto para elas. Mas isso é diferente. É outra coisa. Não devíamos tocá-la. Conquistou o direito à vida.

            Ele largou a faca.

            - Muito bem. Como você quiser.

            Fomos para a sala e ele pegou num livro. Após uma hora, perguntei:

            - Então como se pode definir a vida?

            - Lilly, estou muito velho para essa filosofia.

            À tarde, telefonei para a Sociedade Zoológica de New York, para a qual contribuía. Custei muito a conseguir que transferissem a ligação para alguém que entendesse de tartarugas. Quando terminei minha explicação, a voz jovem disse:

            - Sim, a Chelydra Serpentina. Um adversário feroz. Onde a conheceu?

            - Onde a conheci?

            - Encontrou.

            - Em um coquetel para homens de letras, à margem de um lago.

            Ele tossiu.

            - Em terra ou na água? É especialmente feroz quando está em terra. Morde tão rapidamente que muitas vezes não se pode acompanhar o movimento com o olhar. Seus membros são muito fortes, e uma projeção estreita de cada lado os liga à carapaça...

            - Sim – disse. – O senhor está lendo o mesmo livro que eu. O que quero saber é como conseguiu descer uma escada e subir a rampa de um jardim, com a cabeça pendurada por um pedaço de pele.

            - Uma dessas tartarugas de tamanho médio pesa entre oito e doze quilos, mas já foram encontradas várias com o dobro do peso. Os ovos são muito interessantes, de casca resistente, e se assemelham a bolas de pingue-pongue...

            - Por favor, diga-me o que pensa da, da, da vida dela.

            Após uma pausa, ele disse:

            - Não compreendo.

            - Está, ou estava viva, quando a achamos no jardim? Está viva agora?

            - Não sei onde quer chegar – respondeu.

            - Estou lhe perguntando sobre a vida. O que é vida?

            - Suponho que seja o que existe antes da morte. Por favor, ponha o coração dela numa pequena quantidade de água com sal, e tenha a bondade de nos escrever dizendo por quanto tempo o coração bateu. Temos registros de dez horas.

            - Então não está morta.

            Houve mais uma pausa.

            - Não no sentido comum.

            - E qual é o sentido comum?

Alguém falou, no barulho que fazia fundo à nossa conversa, e ouvi-o cochichar. Depois disse:

            - Esse tipo de tartaruga representa uma forma muito primitiva, talvez a forma mais primitiva de vida.

            - Está viva ou morta? – insisti. - É tudo o que quero saber, por favor.

            Houve mais sussurros.

            - A senhora pediu uma opinião científica, não tenho qualificações para lhe dar uma opinião teológica. Obrigada por telefonar.

            (Dez ou doze anos depois, ao fim de um jantar, uma mulher imensa atravessou a sala e veio sentar-se perto de mim. Disse-me que estava empenhada em escrever um livro sobre Madame de Staël, e quando acabe de emitir os sons que reservo para coisas que não entendo, ela prosseguiu:

            - Meu irmão era zoólogo. Uma vez a senhora telefonou para ele a respeito de um certo tipo  de tartaruga.

            Pedi-lhe que o cumprimentasse e lhe apresentasse as minhas desculpas, e ele disse:

            - Oh, isso não é necessário. Está trabalhando em Calcutá).

            Mas no dia do telefonema fui contar minha conversa a Hammett. Ele ouviu, sorriu quando cheguei à parte teológica, e voltou à leitura do velho livro, chamado The Animal Kingdom. Minhas anotações na primeira página desse livro, que peguei novamente numa tarde de julho de 1972, trouxeram-me a lembrança da tartaruga.

            Quase na hora do jantar, Helen veio à sala e disse:

            - Aquela tartaruga. Não posso cozinhar com ela parada perto de mim.

            - Que vamos fazer? perguntei a Hammett.

            - Sopa.

            - Na próxima vez. Na próxima tartaruga. Vamos enterrar essa.

            - Você que a enterre.

            - Está zangado comigo. Por quê?

            - Estou tentando entender você.

            - É que ela conseguiu chegar tão longe. E eu nunca tinha pensando sobre a vida, se é que sabe o que quero dizer.

            - Não, não sei – disse ele.

            - Sobre o que é a vida e coisas assim.

            - Coisas assim. Na sua idade.

            - Você é muito mais velho do que eu – retorqui.

            - Isso ainda lhe dá trinta e quatro anos, e continua velha demais para essas coisas.

            - Está zombando de mim.

            - Pare com isso, Lilly. Conheço todos os sintomas.

            - Sintomas de quê?

            Ele levantou-se e saiu da sala. Uma hora depois levei-lhe um martini e disse:

            - Só essa tartaruga. Na próxima estarei em forma.

            - Para mim, tudo bem - disse ele – de um jeito ou de outro.

            - Não, não está bem para você. Está querendo me dizer outra coisa.

            - Estou dizendo que pare com isso.

            - E eu estou dizendo...

            - Não quero jantar – disse Hammett.

            Saí do quarto batendo a porta. Na hora do jantar mandei-lhe um recado para que descesse imediatamente, e Helen voltou, dizendo que respondera que não estava com fome ainda.

            Durante o jantar, Helen avisou que não queria a tartaruga na cozinha quando descesse para fazer o café pela manhã.

            Por volta das dez horas, quando Helen já se deitara, fui ao andar de cima e atirei um livro contra a porta de Hammett.

            - Sim? disse ele.

            - Por favor, venha me ajudar a enterrar a tartaruga.

            - Não enterro tartarugas.

            - E me enterrará?

            - Quando chegar a sua hora, farei o possível – respondeu.

            - Abra a porta.

            - Não. Peça a Fred Herrmann para ajudá-la a enterrar a tartaruga. E peça a Helen que lhe empreste o livro de orações.

            Mas quando acabei de beber o terceiro copo, era muito tarde para acordar Fred. Fui olhar a tartaruga e vi que o sangue estava pingando no chão. Havia muitos anos que tinha um certo medo de Helen, e ainda o teria nos anos por vir. E assim, cerca de meia-noite amarrei uma corda na cauda da tartaruga, apanhei a lanterna, arrastei-a escada abaixo até a garagem e amarrei-a ao pára-choque do carro. Depois voltei e me pus embaixo da janela de Hammett:

            - Venha e ajudar – gritei. – Sou fraca e não posso cavar um buraco tão grande.

            Depois de eu repetir a mesma coisa muitas vezes, ele respondeu:

            - Gostaria de ajudar, mas estou dormindo.

            Passei a hora seguinte cavando um buraco na ribanceira acima do lago e quando cobri a tartaruga o uísque tinha acabado e eu estava tonta e enjoada. Espetei uma vara na sepultura e fui para a casa, mas devo ter adormecido na metade do caminho, porque acordei ao raiar do dia sob uma chuva pesada e com as rodas do carro sobre um toco de árvore. Fui para casa e para a cama e nem Hammett, e nem eu, falamos na tartaruga por uns quatro ou cinco dias. Isso não foi por acaso, mas porque não nos falamos nem uma palavra durante três dias, fazendo as refeições em horas diferentes.

            Então ele voltou de uma caminhada num fim de tarde e disse:

            - Peguei duas tartarugas. O que quer fazer com elas?

            - Matá-las. Fazer sopa.

            - Tem certeza?

            - Tudo é difícil na primeira vez. Você sabe disso.

            - Não sabia até que conheci você – disse ele.

            - Fiquei com as costas doendo de cavar aquela sepultura, e estou resfriada, mas tinha que enterrar aquela tartaruga, e não quero mais falar nisso.

            - Você não fez um serviço muito bom. Algum animal esteve na sepultura e comeu a tartaruga, mas mesmo assim Deus vai abençoá-la. Juntei os ossos, coloquei-os na cova outra vez, e pintei uma lápide por você.

            Durante todos os anos em que vivemos naquele lugar, podia-se ver perto do lago uma placa caprichosamente pintada: “Aqui jaz minha primeira tartaruga. Senhorita Religiosa L. H.”.

            Talvez hoje ainda esteja lá.


[Encontro Novembro 2008 coordenação: Denise]

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