ATO 1
Cena: Dia. Velha escada de madeira na esquerda baixa, com tapete gasto e esmaecido nos degraus. Os degraus sobem para a esquerda, para as coxias, sem patamar visível. Na direita alta, um velho sofá verde escuro, com estofamento saindo para fora em alguns pontos. À esquerda do sofá, um abajur de coluna, com cúpula, amarelo pálido e um pequeno criado-mudo com vários frascos de comprimidos em cima. À esquerda baixa do sofá, um aparelho de TV grande e fora de moda, marrom, com a tela voltada para o sofá. Da tela, sai uma luz azulada e oscilante, mas nenhuma imagem, nenhum som. No escuro, a luz do abajur e da TV se acendem lentamente no espaço negro. O espaço atrás do sofá, no fundo do palco, é uma grande varanda com janelas de tela contra insetos e chão de tábuas. Uma sólida porta, à esquerda do sofá, abre da varanda para fora. Além, vêem-se as silhuetas escuras dos elmos.
Gradualmente, a forma de DODGE se delineia, sentado no sofá, olhando a TV, a luz azul piscando em seu rosto. Veste uma velha camiseta, suspensórios, calças de trabalho cáqui e chinelos marrons. Ele se cobriu com um velho cobertor marrom. É muito magro e de aspecto doentio, nos seus setenta e tantos anos. Ele apenas olha, fixamente, a TV. Suavemente, o palco se enche de mais luz. Ruído de chuva fraca. DODGE inclina lentamente a cabeça para trás e fixa o teto por um instante, ouvindo a chuva. Torna a baixar a cabeça e olha a TV. Vira a cabeça lentamente para a esquerda e olha a almofada do sofá, vizinha àquela em que está sentado. Tira o braço esquerdo de dentro do cobertor, desliza a mão por baixo da almofada e tira uma garrafa de uísque. Olha para a esquerda baixa, na direção da escada, ouve, depois destampa a garrafa, toma um longo gole e torna a tampar. Coloca a garrafa de volta debaixo da almofada e olha a TV. Começa a tossir, devagar, suavemente. A tosse gradualmente aumenta. Ele aperta a boca com uma mão e tenta abafar a tosse. A tosse torna-se mais alta, de repente pára, quando ele ouve o som da voz de sua mulher que vem do alto da escada.
HALIE (apontando as palhas) – O que que é isso na minha casa! (chuta as palhas) Que que é isso aqui?
TILDEN para de descascar e olha para ela.
HALIE (para DODGE) – E você acha bonito!
DODGE torna a se cobrir com o cobertor.
DODGE – Você vai sair nessa chuva?
HALIE – Não está chovendo.
TILDEN recomeça a descansar.
DODGE – É. Na Flórida não está, não.
HALIE – Não estamos na Flórida!
DODGE – Não está chovendo na pista de corrida.
HALIE – Você andou tomando aqueles comprimidos? Eles sempre fazem você falar bobagem. Tilden, ele tomou esses comprimidos?
TILDEN – Ele não tomou nada, não.
HALIE (para DODGE) – O que é que você tomou?
DODGE – Não está chovendo na Califórnia, nem na Flórida, nem na pista de corrida de cavalo. Só
HALIE vai até o criado-mudo ao lado do sofá e examina os frascos de comprimidos.
HALIE – Quais que você tomou? Tilden, você deve ter visto se ele tomou alguma coisa.
TILDEN – Ele não tomou nada.
HALIE – Então por que está falando feito louco?
TILDEN – Fiquei aqui o tempo todo.
HALIE – Então vocês dois tomara alguma coisa!
TILDEN – Eu só estava tirando a palha do milho.
HALIE – E onde é que o senhor arrumou esse milho? Por que é que a casa está de repente cheia de milho?
DODGE – Super safra! (Bumper Crop)
HALIE (indo para o centro) – Faz mais de trinta anos que não dá milho aqui.
TILDEN – Tá cheio de milho lá nos fundos. Até onde a vista alcança.
DODGE (para HALIE) – As coisas continuam acontecendo enquanto você fica lá em cima, sabe? O mundo não pára só porque você está lá
HALIE – Eu percebo muito bem o mundo à minha volta! Muito obrigada. Acontece que eu tenho uma bela vista lá de cima. Da minha janela dá pra ver muito bem o quintal. E não tem milho nenhum lá atrás. Absolutamente nada!
DODGE – Tilden não ia mentir. Se ele diz que tem milho, tem milho.
HALIE – O que significa esse milho, Tilden?
TILDEN – Pra mim é um mistério. Eu estava lá fora. E a chuva estava caindo. E eu não estava com vontade de entrar pra dentro. Eu nem liguei pro frio. Nem liguei pra umidade. Eu estava só andando. Estava todo sujo de lama, mas não liguei pra lama também. E aí eu levantei a cabeça. E vi esse canteiro de milho. Na verdade eu estava no meio dele. Então, eu estava ali.
HALIE – Não tem milho nenhum lá fora Tilden! Milho nenhum! Então, você ou roubou esse milho ou comprou.
DODGE – Ele não tem dinheiro.
HALIE (para TILDEN) – Então você roubou!
TILDEN – Não roubei. Não quero que me chutem pra fora de Illinois. Me chutaram pra fora do Novo México e eu não quero que me chutem aqui de Illinois.
HALIE – Você vai ser chutado pra fora desta casa, Tilden, se não me disser de onde é que arrumou esse milho!
TILDEN começa a chorar baixinho para si mesmo, mas continua descascando o milho. Pausa.
DODGE (para HALIE) – Que que você tinha de dizer isso pra ele? Que é que interessa saber onde ele arranjou o milho? Por que é que você tem de pegar e falar assim com ele?
HALIE (para DODGE) – A culpa é sua, sabe? Você é que está por trás disso tudo! Garanto que você achou engraçado! Uma piada! Encher a casa de palha de milho. Acho melhor você limpar isso tudo antes do Bradley ver.
DODGE – O Bradley não vai chegar nem na porta!
HALIE (chutando as palhas, de um lado para outro) – O Bradley vai ficar muito chateado quando vir isso. Ele não gosta de ver a casa desarrumada. Ele não suporta quando as coisas estão fora do lugar. A menor coisa. Você sabe como ele fica.
DODGE – O Bradley nem mora aqui!
HALIE – A casa é tanto dele quanto nossa. Ele nasceu nesta casa!
DODGE – Ele nasceu foi num chiqueiro.
HALIE – Não diga isso! Não diga nunca uma coisa dessas!
DODGE – Ele nasceu foi num maldito dum chiqueiro! Foi lá que ele nasceu e lá que é o lugar dele! O lugar dele não é nesta casa!
HALIE (pára) – Não sei o que é que te deu, Dodge. Não sei mesmo o que foi que te deu. Mas você virou um homem mau. Você era um homem bom.
DODGE – Seis de um, meia dúzia do outro.
HALIE – Você fica aí sentado dia e noite, apodrecendo! Se decompondo! Empestando a casa com o cheiro do seu corpo pútrido! Quebrando a cabeça até altas horas da madrugada! Pensando coisas ruins, mesquinhas e burras pra dizer de quem é sangue do nosso sangue!
DODGE – Ele não é sangue do meu sangue! O sangue do meu sangue está enterrado lá no fundo do quintal!
Todos congelam. Longa pausa. Os homens olham fixamente para ela.
HALIE (calma) – Chega, Dodge. Agora chega. Eu vou sair agora. Vou almoçar com o padre Dewis. E conversar com ele sobre o monumento. Uma estátua. Pelo menos uma placa.
Ela cruza para a porta da direita alta. Pára.
HALIE – Se precisar de alguma coisa, peça ao Tilden. Ele é o mais velho. Deixei um dinheiro na mesa da cozinha.
DODGE – Não preciso nada.
HALIE – É, acho que não. (ela abre a porta e olha pra fora, pela varanda) Ainda chovendo. Adoro o cheiro que fica logo depois que a chuva pára. A terra. Não vou demorar.
Ela sai e fecha a porta. Ainda visível, na varanda, ela vai em direção à porta de tela da esquerda do palco. No meio da varanda ela pára, e fala com DODGE, sem se voltar para ele.
HALIE – Dodge, diga pro Tilden não sair mais lá para o quintal. Não quero que ele saia na chuva.
DODGE – Diga você. Ele está sentado bem aqui.
HALIE – Ele nunca me dá ouvidos, Dodge. Nunca me deu ouvidos antes.
DODGE – Eu digo pra ele.
HALIE – Agora a gente tem de cuidar dele como cuidava antes. Como a gente sempre cuidou. Ele ainda é uma criança.
DODGE – Eu cuido dele.
HALIE – Bom.
Ela vai até a porta de tela, à esquerda, pega um guarda-chuva que estava dependurado de um gancho e sai. A porta bate atrás dela. Longa pausa. TILDEN descasca milho, olhos fixos no balde. DODGE acende um cigarro, olha a TV.
TILDEN (ainda descascando) – Não devia ter falado aquilo pra ela.
DODGE (fixo na TV) – O quê?
TILDEN – O que o senhor disse. O senhor sabe.
DODGE – Você não sabe nada daquilo, sabe?
TILDEN – Sei. Sei de tudo. Nós todos sabemos.
DODGE – Então, que diferença faz? Todo mundo sabe, todo mundo esqueceu.
TILDEN – Ela não esqueceu.
DODGE – Ela devia ter esquecido.
TILDEN – Pra mulher é diferente. Ela não consegue esquecer aquilo. Como é que ela pode esquecer?
DODGE – Não quero falar disso.
TILDEN – Do que é que o senhor quer falar?
DODGE – Não quero falar de nada! Não quero falar de encrenca, nem do que aconteceu faz cinqüenta anos, trinta anos, nem das pistas de corrida, nem da Flórida, nem da última vez que eu plantei milho! Não quero falar!
TILDEN – O senhor não quer morrer, quer?
DODGE – Não, morrer também não quero.
TILDEN – Então, melhor falar, senão morre.
DODGE – Quem que te disse isso?
TILDEN – Eu sei. Descobri isso lá no Novo México. Pensei que estava morrendo, mas só tinha perdido a voz.
DODGE – Você estava com alguém?
TILDEN – Estava sozinho. Pensei que tinha morrido.
DODGE – Talvez tivesse sido melhor mesmo. Pra que é que você voltou aqui?
TILDEN – Eu não sabia pra onde ir.
DODGE – Você já é homem feito. Não devia mais depender dos seus pais na sua idade. É antinatural. Agora a gente não pode fazer mais nada por você. Você não podia ganhar a vida por lá? Achar um jeito de ganhar a vida? Se sustentar? Pra que é que você voltou pra cá? Acha que a gente vai te alimentar pra sempre?
TILDEN – Eu não sabia pra onde ir.
DODGE – Eu nunca voltei pra casa dos meus pais. Nunca. Nunca nem senti vontade. Eu era independente. Sempre independente. Sempre achava um jeito.
TILDEN – Eu não sabia o que fazer. Não conseguia pensar nada.
DODGE – Não tinha nada que pensar. É só tocar
TILDEN se levanta.
TILDEN – Não sei.
DODGE – Onde é que você vai?
TILDEN – Lá nos fundos.
DODGE – Não pode ir lá não. Você ouviu o que ela disse. Não se faça de surdo comigo!
TILDEN – Eu gosto lá de trás.
DODGE – Na chuva?
TILDEN – Principalmente na chuva. Gosto de sentir. É que nem sempre foi.
DODGE – Você tem de ficar cuidando de mim. Me pegar as coisas que eu precisar.
TILDEN – Que é que o senhor precisa?
DODGE – Não preciso nada! Mas posso precisar. Posso precisar de alguma coisa a qualquer momento. Não posso ficar sozinho nem um minuto!
DODGE começa a tossir.
TILDEN – Vou estar ali fora. É só gritar.
ATO 2
Cena: Mesmo cenário do primeiro ato. Noite. Som de chuva. DODGE ainda dormindo no sofá. Seu cabelo está cortado extremamente curto e em alguns pontos o couro cabeludo está ferido e sangrando. Seu boné ainda está no centro do palco. Todo o milho e as palhas, o balde e o banquinho foram retirados. As luzes sobem ao som das risadas de uma moça fora do palco, à esquerda. DODGE continua dormindo. SHELLY e VINCE aparecem no fundo, à esquerda, além da porta de tela da varanda, partilhando o abrigo do sobretudo de VINCE sobre suas cabeças. SHELLY tem cerca de dezenove anos, cabelo preto, muito bonita. Veste jeans justos, saltos altos, camiseta vermelho escuro e um casaco curto de pele de coelho. Sua maquiagem é exagerada e o cabelo foi encrespado. VINCE é filho de TILDEN, cerca de vinte e dois anos, usa camisa xadrez, jeans, óculos escuros, botas de cowboy e traz uma caixa de saxofone preta. Eles sacodem a chuva do corpo enquanto entram na varanda pela porta de tela.
De repente, TILDEN entra da esquerda do palco exatamente como fez antes. Desta vez, tem os braços cheios de cenouras. DODGE, VINCE e SHELLY param de repente quando o vêem. Todos olham para TILDEN enquanto ele caminha lentamente até o centro do palco e pára. DODGE se senta no sofá, exausto.
DODGE (ofegante, para TILDEN) – Onde é que você se enfiou?
TILDEN – Lá atrás.
DODGE – Cadê minha garrafa?
TILDEN – Sumiu.
TILDEN e VINCE se olham. SHELLY se afasta.
DODGE (para TILDEN) – Você roubou minha garrafa!
VINCE (para TILDEN) – Pai?
TILDEN fica olhando para VINCE.
DODGE – Você não tinha o direito de roubar a minha garrafa! Não tinha o direito!
VINCE (para TILDEN) – É Vince. Sou eu, Vince.
TILDEN olha para VINCE, depois olha para DODGE, depois se volta para SHELLY.
TILDEN (depois de pausa) – Eu apanhei estas cenouras. Se alguém quiser cenoura, fui eu que apanhei.
SHELLY (para VINCE) – Esse é seu pai?
VINCE (para TILDEN) – Pai, o que é que você está fazendo aqui?
TILDEN apenas olha VINCE, segurando as cenouras, DODGE puxa o cobertor de novo sobre si mesmo.
DODGE (para TILDEN) – Você vai ter de me arrumar outra garrafa! Você vai me arrumar uma garrafa antes da Halie voltar! Tem dinheiro na mesa (aponta para a esquerda do palco, cozinha).
TILDEN (sacudindo a cabeça) – Eu não vou lá, não. Na cidade.
SHELLY vai até TILDEN. TILDEN a encara.
SHELLY (para TILDEN) – Você é o pai do Vince?
TILDEN (para SHELLY) – Vince?
SHELLY (apontando VINCE) – Esse aí deve ser seu filho! É o seu filho? Você reconhece ele? Eu só estou de carona aqui. Pensei que todo mundo se conhecia.
TILDEN olha para VINCE. DODGE se enrola no cobertor e senta no sofá, olhando o chão.
TILDEN – Eu tinha um filho, mas a gente enterrou ele.
DODGE olha depressa para TILDEN. SHELLY olha para VINCE.
DODGE – Você cale a boca! Você não sabe de nada!
VINCE – Pai, eu pensei que o senhor estava no Novo México. A gente estava descendo pra lá de carro pra ver o senhor.
TILDEN – É longe.
DODGE (para TILDEN) – Você não sabe de nada! Isso aconteceu antes de você nascer! Muito antes!
VINCE – O que que aconteceu, pai? O que é que está acontecendo aqui? Pensei que estava todo mundo bem. Que aconteceu com a Halie?
TILDEN – Foi embora.
SHELLY (para TILDEN) – Quer que eu pegue essas cenouras pra você?
TILDEN olha para ela. Ela se aproxima dele. Estende os braços. TILDEN olha para ela, depois lentamente deposita as cenouras nos braços dela. SHELLY fica ali, segurando as cenouras.
TILDEN (para SHELLY) – Você gosta de cenoura?
SHELLY – Claro. Gosto de tudo que é legume.
DODGE (para TILDEN) – Você tem de me arrumar uma garrafa antes da Halie voltar!
DODGE esmurra o sofá. VINCE vai até DODGE e tenta consolá-lo. SHELLY e TILDEN se olham face a face.
TILDEN (para SHELLY) – O quintal está cheio de cenouras. Milho. Batata.
SHELLY – Você é pai do Vince, certo?
TILDEN – Todo tipo de legume. Você gosta de legume?
SHELLY (ri) – Gosto. Eu adoro legumes.
TILDEN – A gente podia cozinhar essas cenouras, sabe. Você podia cortar elas e a gente cozinhava.
SHELLY – Tá bom.
TILDEN – Vou te pegar um balde e uma faca.
SHELLY – Okay.
TILDEN – Já volto. Não saia daí.
TILDEN sai para a esquerda do palco. SHELLY fica no centro, braços cheios de cenouras. VINCE está de pé ao lado de DODGE. SHELLY olha para VINCE e depois para as cenouras.
DODGE (para VINCE) – Você podia me arrumar uma garrafa (aponta para a esquerda) Tem dinheiro na mesa.
VINCE – Vovô, por que não deita um pouco?
DODGE – Eu não quero deitar um pouco! Toda vez que eu deito acontece alguma coisa! (arranca o boné, aponta a cabeça) Olha o que acontece! É isso que acontece! (torna a colocar o boné) deite você e veja o que te acontece! Vê se você gosta! Eles te roubam a garrafa! Cortam teu cabelo! Matam teus filhos! Isso é que acontece.
VINCE – Descanse um pouquinho.
DODGE (pausa) – Você podia me arrumar uma garrafa, sabe. Nada te impede de me arrumar uma garrafa.
SHELLY – Por que você não vai comprar uma garrafa pra ele, Vince? Quem sabe isso pode ajudar todo mundo a se identificar.
DODGE (apontando para SHELLY) – Tá vendo? Ela acha que você devia ir me buscar uma garrafa.
VINCE vai até SHELLY.
VINCE – Que que você está fazendo com essas cenouras?
SHELLY – Estou esperando seu pai.
DODGE – Ela acha que você devia ir me buscar uma garrafa!
VINCE – Larga essas cenouras tá? A gente tem de controlar a situação aqui! Vou precisar da sua ajuda.
SHELLY – Eu estou ajudando.
VINCE – Você só está piorando as coisas! Está piorando tudo! Larga essas cenouras!
VINCE tenta arrancar as cenouras dos braços dela. Ela se volta, protegendo as cenouras.
SHELLY – Sai daí. Pára!
VINCE se afasta dela. Ela se volta para ele ainda segurando as cenouras.
VINCE (para SHELLY) – Por que é que você está fazendo isso? Está querendo me gozar? É a minha família, tá sabendo?
SHELLY – Você está querendo me enganar! Eu preferia era não estar aqui. Preferia era estar a milhas daqui. Em qualquer lugar, menos aqui. É você que quer ficar. Então eu fico. Eu fico e vou cortar as cenouras. E vou cozinhar as cenouras. Vou fazer o que for preciso pra sobreviver. Pra sair dessa.
VINCE – Larga essas cenouras, Shelly.
TILDEN entra da esquerda com o balde, o banquinho e uma faca. Coloca o banquinho e o balde no centro do palco para SHELLY. SHELLY olha para VINCE, depois se senta no banquinho, coloca as cenouras no chão e pega a faca da mão de TILDEN. Olha para VINCE de novo e pega uma cenoura, corta as pontas, raspa a pele e coloca no balde. Ela repete isso, VINCE fuzilando com o olhar. Ela sorri.
DODGE – Ela podia me buscar uma garrafa. É o tipo de garota que podia me arrumar uma garrafa. Fácil. Ela vai lá. Desliza até o balcão. É capaz de eles darem pra ela duas garrafas pelo preço de uma. Ela consegue isso.
SHELLY ri. Continua cortando cenouras. VINCE vai até DODGE, olha para ele. TILDEN fica olhando as mãos de SHELLY. Longa pausa.
VINCE (para DODGE) – Eu não mudei tanto. Quer dizer, fisicamente. Fisicamente eu sou mais ou menos o mesmo. Mesma altura. Mesmo peso. Tudo igual.
DODGE fica olhando para SHELLY enquanto VINCE fala com ele.
DODGE – Ela é linda. Excepcional.
VINCE coloca-se na frente de DODGE para bloquear a sua visão de SHELLY. DODGE vai esticando o pescoço para tentar vê-la, enquanto VINCE demonstra truques de seu passado.
VINCE – Olhe. Olhe isto. Lembra disto? Eu sempre dobrava o dedão assim pra trás. Lembra? Fazia isso na mesa de jantar.
VINCE dobra o polegar para trás diante de DODGE e mostra a ele. DODGE dá uma olhada rápida, depois olha de novo para SHELLY. VINCE muda de posição e mostra outra coisa a ele.
VINCE – E isto aqui?
VINCE arreganha os lábios e começa a tamborilar nos dentes com as unhas, fazendo pequenos ruídos. DODGE dá uma olhada, TILDEN se volta na direção do som. VINCE continua. Vê que TILDEN prestou atenção e vai até ele, sempre tamborilando nos dentes. DODGE liga a TV e assiste.
VINCE – Lembra disto, pai?
VINCE continua tamborilando para TILDEN. TILDEN olha um pouco, fascinado, depois se volta para SHELLY. VINCE continua a batucada dental, vai até DODGE. SHELLY continua trabalhando com as cenouras, falando com TILDEN.
SHELLY (para TILDEN) – Às vezes ele me deixa louca com isso.
VINCE (para DODGE) – Já sei! Desta o senhor vai lembrar. O senhor me chutava pra fora por causa disto.
VINCE puxa a camisa pra fora do cinto e segura com o queixo, expondo o estômago. Agarra a pele de ambos os lados do umbigo e puxa para cima e para baixo fazendo com que pareça uma boca falando. Olha o umbigo e faz uma voz profunda de desenho animado, sincronizada com o movimento. Mostra para DODGE depois vai até TILDEN fazendo os movimentos. Tanto DODGE quanto TILDEN dão uma olhadinha desinteressada e depois o ignoram.
VINCE (voz grave de desenho animado) – “Olá. Como vai? Muito bem. Muito obrigado. É tão bom te ver assim tão bem nesta linda manhã de domingo. Eu estava indo até o armazém pra pegar um balde d’água”.
SHELLY – Vince, não seja bobo, tá?
VINCE pára. Arruma a camisa dentro das calças.
SHELLY – Meu Jesus Cristo. Eles não estão a fim. Não sacou, não?
SHELLY continua cortando cenouras. VINCE vai devagar até TILDEN. TILDEN continua observando SHELLY. DODGE assiste TV.
VINCE (para SHELLY) – Não entendo. Não entendo mesmo. Acho que sou eu. Eu que estou esquecendo alguma coisa.
DODGE (do sofá) – Tá esquecendo de me arranjar uma garrafa! Isso é que você está esquecendo. Qualquer um nesta casa podia me buscar uma garrafa. Qualquer um! Mas ninguém vai. Ninguém entende que é urgente! Descascar cenoura é mais importante. Tocar piano nos dentes! Bom, eu só espero que vocês todos lembrem disso quando ficarem velhos. Quando estiverem imobilizados. Dependendo dos caprichos dos outros.
VINCE vai até DODGE. Pausa, enquanto olha para ele.
VINCE – Eu vou buscar a garrafa.
DODGE – Vai?
VINCE – Claro.
SHELLY se levanta com cenoura e faca na mão.
SHELLY – Você não vai me deixar aqui, vai?
VINCE (indo até ela) – Foi você que sugeriu! Você disse assim “por que não vai buscar uma garrafa pra ele?”. Então, eu vou!
SHELLY – Mas eu não posso ficar aqui.
VINCE – Que que é isso? Não faz nem um minuto você estava disposta a ficar cortando cenoura a noite inteira!
SHELLY – Só se você ficasse. Alguma coisa pra eu fazer, pra não ficar tão nervosa. Não quero ficar aqui sozinha.
DODGE – Não deixa ela te convencer não! Ela é má influência. Vi isso assim que ela entrou aqui.
SHELLY (para DODGE) – O senhor estava dormindo!
TILDEN (para SHELLY) – Não quer mais cortar cenoura?
SHELLY – Quero. Quero, sim.
SHELLY senta no banquinho e continua cortando cenouras. Pausa. VINCE anda a esmo, passa a mão nos cabelos, olhando DODGE e TILDEN. VINCE e SHELLY trocam olhares. DODGE assiste a TV.
VINCE – Cara! Essa é incrível. Incrível mesmo. (continua caminhando de um lado para outro) Que que é isso? Será que a gente caiu numa falha do tempo ou o quê? Será que eu cometi algum crime imperdoável? Tá certo, eu não sou casado (SHELLY olha para ele e volta a olhar as cenouras). Mas não sou divorciado também. E não é segredo que eu me abandonei a uma paixão pecaminosa pelo saxofone soprano. Chupando uma palheta número cinco nas horas miúdas da noite.
SHELLY – Vince, por que é que você tá falando assim? Eles não estão nem ligando. Eles não te reconhecem, só isso.
VINCE – Mas como é que eles podem não me reconhecer! Como, porra, eles podem não me reconhecer! Sou filho deles!
DODGE (assistindo a TV) – Meu filho você não é. Eu tive filhos nos meus bons tempos, mas você não é nenhum deles.
Longa pausa. VINCE fica olhando DODGE, depois olha para TILDEN. Volta-se para SHELLY.
VINCE – Shelly, eu tenho de sair um pouco. Tenho de sair mesmo. Compro uma garrafa e volto logo. Você vai ficar bem aqui. Mesmo.
SHELLY – Não sei se eu vou saber o que fazer, Vince.
VINCE – Eu tenho de pensar. Sei lá. Não sei. Tenho de entender isso tudo.
SHELLY – É só a gente ir embora.
VINCE – Não. Eu preciso descobrir o que está acontecendo.
SHELLY – Olha, você acha que está numa ruim, imagine eu? Além deles não me reconhecerem eu nunca vi nenhum deles antes na minha vida. Não sei quem são esses caras. Podem ser qualquer um.
VINCE – Não são qualquer um!
SHELLY – Isso é o que você diz.
VINCE – Pelo amor de Deus! Esses caras são a minha família! Uma cara sabe quem é a sua família! Agora dá um tempo, ta? Não vou demorar. Dou uma saída e volto logo. Não vai acontecer nada. Prometo.
ATO 3
Cena: Manhã. Mesmo cenário. Sol brilhante. Nenhum som de chuva. Foi tudo limpo de novo. Nenhum sinal das cenouras. Nem balde. Nem banquinho. A caixa do saxofone e o sobretudo de VINCE ainda estão ao pé da escada. BRADLEY está dormindo no sofá com o cobertor de DODGE. A cabeça voltada para a esquerda do palco. A perna de pau de BRADLEY está encostada do lado direito do sofá, ao lado de sua cabeça. Está calçada com o sapato. Os arreios dependurados. DODGE está sentado no chão, encostado ao aparelho de TV virado para a esquerda do palco com o boné de baseball na cabeça. Seu peito e seus ombros estão cobertos com o casaco de pele de coelho de SHELLY. Ele parece mais fraco e mais desorientado. As luzes sobem lentamente ao som de pássaros cantando e permanecem por um tempo em silêncio sobre os dois homens. BRADLEY dorme muito profundamente. DODGE mal se mexe. SHELLY aparece pela esquerda do palco com um largo sorriso e caminha devagar até DODGE equilibrando um pires com uma xícara fumegante de caldo. DODGE fica olhando para ela à medida que ela se aproxima.
DODGE (detém HALIE) – Onde é que você vai? Lá pra cima? Você vai ficar ouvindo lá em cima! Se você sair, você vai ficar ouvindo lá de fora. Melhor ficar aqui e ouvir de uma vez.
HALIE fica perto da escada.
BRADLEY – Se eu estivesse com a minha perna você não ia estar dizendo isso. Você não ia dizer isso se eu estivesse com a minha perna.
DODGE (apontando SHELLY) – Ela está com a sua perna. (ri) Vai ficar com a sua perna. (para SHELLY) Ela quer ouvir. Não quer?
SHELLY – Não sei.
DODGE – Bom, mesmo que você não queira eu vou dizer. (pausa) Halie teve um bebê. Um bebê homem. Ela teve. Eu deixei ela ter sozinha. Para os outros meninos todos eu tinha chamado os melhores médicos, as melhores enfermeiras, tudo. Esse eu deixei ela ter sozinha. E esse doeu mesmo. Quase matou ela, mas ela teve. Ela sobreviveu, sabe. Sobreviveu. Queria crescer dentro desta família. Queria crescer igualzinho a gente. Queria ser parte de nós. Queria fingir que eu era pai dele. Ela queria que eu acreditasse nisso. Mesmo com todo o mundo em volta da gente sabendo. Todo o mundo. Os nossos filhos sabiam. Tilden sabia.
HALIE – Cala a boca! Bradley, faça ele calar a boca!
BRADLEY – Não posso.
DODGE – Tilden era o que sabia. Melhor que todos nós. Ele andava milhas e milhas com o bebê no colo. Halie deixava ele levar. Às vezes a noite inteira. Ele passeava a noite inteira lá no pasto com o bebê. Conversando com ele. Cantando para ele. Eu escutava ele cantando para o bebê. Inventava histórias. Contava para o menino tudo quanto é história. Mesmo sabendo que o bebê não entendia. Não entendia uma palavra do que ele estava dizendo. Não entendia nada. A gente não podia deixar uma coisa daquelas continuar. Não podia deixar aquilo crescer, misturado com a vida da gente. Ele fazia tudo aquilo que a gente construiu parecer um nada. Ficava tudo cancelado por causa desse erro. Dessa fraqueza.
SHELLY – E você matou ele?
DODGE – Matei. Afoguei ele como se faz o bichinho aleijado de uma ninhada. Afoguei ele.
HALIE vai até BRADLEY.
HALIE (para BRADLEY) – O Ansel calava a boca dele! Ansel não ia deixar ele dizer essas mentiras. Ele era um herói! Um homem! Um homem inteiro! Que é que aconteceu com os homens dessa família? Onde estão os homens?
De repente VINCE se atira contra a porta de tela da varanda à esquerda do palco, arrancando-a das dobradiças. Todos se afastam da varanda, exceto DODGE e BRADLEY, e ficam olhando para VINCE que caiu de bruços na varanda em embriagado estupor. Ele canta em altos brados para si mesmo e lentamente consegue se colocar de pé. Traz um saco de papel nas mãos cheio de garrafas vazias. Ele as tira uma de cada vez, sempre cantando e espatifa as garrafas no lado oposto da varanda, por trás da porta de madeira do lado direito do palco. SHELLY caminha devagar para a direita do palco, segurando a perna de madeira e observando VINCE.
VINCE (cantarolando enquanto atira as garrafas) – From the halls of Montezuma to the Shores of Trípoli. We will fight our countries’ battles on the land and on the sea.
Ele enfatiza as palavras “Montezuna”, “Tripoli”, “Battles” e “Sea”, estilhaçando uma garrafa para cada uma. Pára de atirar por um segundo, olha para a direita do palco para a varanda, protege os olhos com a mão como se estivesse olhando o campo de batalha, depois coloca as mãos em volta da boca e grita através do espaço da varanda para um exército imaginário. Os outros assistem aterrorizados, expectantes.
VINCE (para o exército imaginário) – Já chega para vocês aí? Porque aqui tem mais um montão! (aponta um saco de papel cheio de garrafas) Um puta montão! A gente tem munição aqui para acabar com vocês de hoje até o dia do juízo final.
Ele pega outra garrafa, faz o silvo alto de uma bomba e atira a garrafa na porta da direita da varanda. Som de garrafa se espatifando contra a parede. O ruído das garrafas se espatifando deve ser o ruído real e não o som gravado. Ele continua gritando e atirando garrafas uma após outra. VINCE pára por um momento, ofegante de exaustão. Longo silêncio, os outros o observam. SHELLY se aproxima cautelosamente na direção de VINCE, ainda segurando a perna de pau de BRADLEY.
SHELLY (depois de um silêncio) – Vince?
VINCE volta-se para ela. Aproxima-se para olhar através da tela.
VINCE – Quem? O que? Que Vince? Quem que está aí?
VINCE aperta o rosto contra a tela do painel da varanda e olha para todos.
DODGE – Cadê a merda da minha garrafa?
VINCE (olhando para DODGE) – O que? Quem é esse aí?
DODGE – Sou eu! Teu avô! Não se faça de besta comigo! Cadê meus dois paus?
VINCE – Seus dois paus?
HALIE se afasta de DEWIS, no fundo do palco, e olha para VINCE, tentando reconhecê-lo.
HALIE – Vincent? É você Vincent?
SHELLY olha para HALIE depois para VINCE.
VINCE (da varanda) – Que Vincent? Que que é isso? Quem são vocês?
SHELLY (para HALIE) – Ei, espera aí! Espera aí! Que que está acontecendo?
HALIE (chegando mais perto do painel de tela da varanda) – Pensamos que você fosse um assassino, sei lá. Arrombando a porta desse jeito.
VINCE – Eu sou um assassino! Não me subestime nem por um momento! Eu sou o estrangulador da meia-noite! Eu devoro famílias inteiras com uma mordida só!
VINCE agarra uma garrafa e a esmigalha na varanda. HALIE recua.
SHELLY (aproximando-se de HALIE) – Então a senhora sabe quem é ele?
HALIE – É claro que eu sei quem é ele! Mas não posso dizer o mesmo de você.
BRADLEY (sentando no sofá) – Você suma da nossa varanda, sua besta! Que é que você pensa que está fazendo aí quebrando garrafa desse jeito? Quem é que são esses dois afinal? De onde é que eles saíram?
VINCE – Eu devia ir quebrar elas aí dentro!
HALIE (indo até a varanda) – Você não se atreva! Vincent, que é que há com você? Por que é que você está agindo assim?
VINCE – Eu devia entrar aí e conquistar esse território!
HALIE volta até DEWIS.
HALIE (para DEWIS) – Pastor, o que é que o senhor está fazendo parado aí, vendo tudo cair aos pedaços? O senhor não podia resolver essa situação?
DODGE ri, tosse.
DEWIS – Eu sou visita, Halie. Não sei bem qual é minha posição. De qualquer forma, vocês não fazem parte da minha paróquia.
VINCE começa a tirar mais garrafas enquanto as coisas continuam.
BRADLEY – Se eu estivesse com a minha perna eu resolvia! Eu devolvia ele para a estrada! Se eu pudesse chegar ali arrancava as orelhas dele!
BRADLEY rasga o painel de tela com um soco tentando alcançar VINCE para agarrá-lo, mas não acerta. VINCE se afasta de um salto da mão de BRADLEY.
VINCE – Aaaah! Nossas trincheiras foram invadidas! Animais de tentáculos! Feras das profundezas!
VINCE ataca a mão de BRADLEY com uma garrafa. BRADLEY puxa a mão de volta para dentro.
SHELLY – Vince! Pára com isso, ta bom? Eu quero ir embora daqui!
VINCE aperta o rosto contra a tela, olha para SHELLY.
VINCE (para SHELLY) – Eles estão te mantendo prisioneira aí, meu bem? Uma coisinha tão gostosa. Com toda a vida pela frente. Colhida em botão.
SHELLY – Eu vou sair aí, Vince! Vou sair aí e você vai até o carro comigo e nós vamos embora daqui. Para qualquer lugar. Embora daqui.
SHELLY vai até a caixa de saxofone e o sobretudo de VINCE, coloca no chão a perna de pau à esquerda na frente do palco, pega a caixa do saxofone e o sobretudo. VINCE observa-a através do painel de tela.
VINCE (para SHELLY) – Vamos ter de negociar. Fazer um acordo. Uma troca de prisioneiros, sei lá. Alguns dos deles por um dos nossos. Que para mim, é um preço bem baixo.
SHELLY vai até a porta da direita do palco com o casaco e a caixa.
SHELLY – Vá para o carro! Eu vou sair agora. Nós vamos embora.
VINCE – Não saia daqui! Não se atreva a sair daqui!
SHELLY pára na porta, à direita do palco.
SHELLY – Por quê?
VINCE – Passagem proibida. Verboten! É tabu! Ninguém, nem homem nem mulher, atravessou a fronteira e viveu para contar a história!
SHELLY – Aceito o risco.
SHELLY vai para a porta da direita do palco e abre-a. VINCE tira um grande canivete de caça e abre a lâmina. Espeta a lâmina na tela e começa a fazer um buraco suficientemente grande para ele passar. BRADLEY se encolhe num canto do sofá enquanto VINCE corta a tela.
VINCE (cortando a tela) – Não saia aqui! Estou avisando! Você vai desintegrar!
DEWIS pega HALIE pelo braço e puxa-a para a escada.
DEWIS – Halie talvez fosse melhor a gente subir até isto tudo acabar.
HALIE – Não entendo. Eu não consigo entender. Ele era um garotinho tão doce.
DEWIS larga as rosas ao lado da perna de pau no pé da escada e acompanha HALIE rapidamente escada acima. HALIE fica olhando para trás, para VINCE, enquanto sobem.
HALIE – Não havia nenhuma semente de maldade nele. Todo mundo adorava Vincent. Todo mundo. Era uma criança modelo.
DEWIS – Daqui a pouco ele está bom. Ele só bebeu um pouco demais, só isso.
HALIE – Ele cantava dormindo, cantava. No meio da noite. Uma vozinha tão doce. Como um anjo. (ela pára por um instante) Eu ficava acordada ouvindo. Ficava acordada pensando que até morrer seria bom. Porque Vincent era um anjo. Um anjo da guarda. Ele ia nos proteger. Ele ia nos proteger a todos.
DEWIS a leva degraus acima. Eles desaparecem no alto. VINCE está agora atravessando o painel de tela para o sofá. BRADLEY despenca do sofá, agarrado no seu cobertor, mantendo-o enrolado em torno de si. SHELLY está do lado de fora na varanda. VINCE segura a faca com os dentes assim que o buraco é suficientemente grande para ele passar. BRADLEY começa a se arrastar lentamente na direção de sua perna de pau, tentando alcançá-la.
DODGE (para VINCE) – Vai em frente! Domine a casa! Domine esta maldita casa! Pode ficar com ela! É sua! Desde a primeira hipoteca que ela só dá dor de cabeça mesmo. Eu vou morrer a qualquer momento. A qualquer momento. Vocês não vão nem notar. Então quero deixar os meus negócios em ordem definitivamente.
À medida que DODGE proclama o seu último desejo e testamento, VINCE penetra na sala, com a faca na boca e passeia lentamente pelo espaço, inspecionando sua herança. Casualmente ele repara BRADLEY se arrastando para a sua perna. VINCE vai até a perna e fica empurrando-a com o pé para que esteja sempre fora do alcance de BRADLEY, e prossegue sua inspeção. Ele apanha as rosas do chão e leva-as com ele, aspirando o seu perfume. Pode-se ver SHELLY lá fora na varanda, caminhando lentamente para o centro, olhando fixamente para VINCE, VINCE a ignora.
DODGE – Esta casa fica para o meu neto, Vincent. Com toda a mobília, equipamentos e parafernália nela contidos. Com tudo o que estiver preso às paredes ou de qualquer outra forma protegido por esse teto. Minhas ferramentas, a saber, minha serra de fita, minha serra tico-tico, minha furadeira, minha serra circular, meu torno, minha lixadeira elétrica, ficam todas para o meu filho mais velho, Tilden. Quer dizer, se ele algum dia aparecer de novo. Meu galpão e o equipamento de gasolina, a saber, meu trator, minha escavadeira, além de todos os complementos e equipamentos da supra citada maquinaria, a saber, minha roçadeira, meu arado pesado, meu arado de discos, meu equipamento automático de fertilização, meu debulhador, minha sementeira, meu apanhador John Deere, minha escavadeira de mourão, minha marreta, meu torno... (para si mesmo) eu já mencionei o torno? Claro que eu já pus o torno... meus discos do Benny Goodman, meus arreios, meus freios, meus cabrestos, minha pua, minha grosa grossa, minha forja, minha plaina, meus pregos, minhas réguas de nível e meus esquadros, meu banquinho de ordenhar... não, meu banquinho de ordenhar não... meus martelos e formões, minhas dobradiças, minhas porteiras, meu arame farpado, minha furadeira de impacto, minhas cordas de crina de cavalo e todo o material correlato deve ser colocado numa pilha gigantesca e incinerado no centro exato de minhas terras. Quando a fogueira estiver no seu auge, de preferência numa noite fria e sem vento, meu corpo deve ser lançado a ela e queimado até que se reduza a cinzas.
Pausa. VINCE tira a faca da boca e cheira as rosas. Ele está de frente para a platéia e não se vira para SHELLY. Ele fecha o canivete e guarda-o no bolso.
SHELLY (da varanda) – Eu estou indo, Vince. Não sei se você vem ou não vem, mas eu estou indo embora.
VINCE (cheirando as rosas) – Antes de ir embora, deixa a minha corneta no sofá.
SHELLY (indo até o buraco do painel de tela) – Você não vem?
VINCE fica na frente do palco, volta-se e olha para ela.
VINCE – Eu acabei de herdar a casa.
SHELLY (da varanda, através do buraco) – Você quer ficar aqui?
VINCE (empurrando a perna de BRADLEY para fora do alcance dele) – Tenho de continuar a linhagem. Tenho de cuidar pra coisa continuar rolando.
BRADLEY, do chão, olha para ele e continua se arrastando na direção de sua perna. VINCE continua afastando-a.
SHELLY – Que que aconteceu com você, Vince? Você desapareceu.
VINCE (pausa, fala de frente do palco) Eu ia fugir ontem de noite. Eu ia fugir e continuar fugindo. Dirigi a noite inteira. Até a fronteira do Iowa. Os dois paus do velho do meu lado assim no banco. Chovendo o tempo inteiro. Não parou nunca. Eu podia me ver no pára-brisa. Minha cara. Meus olhos. Fiquei estudando a minha cara. Estudando a minha cara inteirinha. Como se estivesse olhando para uma outra pessoa. Como se conseguisse enxergar a raça inteirinha por trás dele. Que nem a cara de uma múmia. Eu vi ele morto e vivo ao mesmo tempo. Na mesma respiração. No pára-brisa, fiquei vendo ele respirar como se estivesse congelado no tempo. E cada respirada marcava a cara dele. Marcava ele para sempre sem ele saber. Então a cara mudou. A cara dele virou a cara do pai dele. Os mesmos ossos. Os mesmos olhos. O mesmo nariz. A mesma respiração. E a cara do pai dele virou a cara do avô dele. E foi indo assim. Mudando. Direto para umas caras que eu nunca tinha visto, mas que ainda reconhecia. Ainda reconhecia o esqueleto por baixo delas. Os olhos. A respiração. A boca. Acompanhei a minha família direto até o Iowa, até o último deles. Direto até a Faixa do Milho. E mais longe ainda. Direto até onde eles me levassem. Aí, dissolveu tudo. Tudo dissolveu.
SHELLY olha para ele um momento depois, através do buraco, coloca a caixa do saxofone e o sobretudo de VINCE no sofá. Ela torna a olhar para VINCE.
SHELLY – Tchau, Vince.
Ela sai para a esquerda da varanda. VINCE fica olhando ela ir embora. BRADLEY dá um impulso tentando agarrar a perna de pau. VINCE rapidamente a levanta e balança-a sobre a cabeça de BRADLEY como uma cenoura. BRADLEY faz esforços desesperados para agarrar a perna. DEWIS desce até o meio da escada e pára, olhando para VINCE e BRADLEY. VINCE olha para DEWIS e sorri. Vai andando para trás com a perna na direção da esquerda do fundo do palco com BRADLEY se arrastando atrás dele.
VINCE (para DEWIS, continuando a torturar BRADLEY) – Ah, desculpa Pastor. Eu só estou tentando me livrar dos vermes desta casa. A casa agora é minha, sabia? Tudo meu. Tudo. Menos os motores e o resto. Mas eu ia mesmo comprar equipamento novo. Arado novo, trator novo, tudo. Tudo novinho. (VINCE provoca BRADLEY atraindo-o para o cantinho esquerdo dos fundos do palco) Estou começando pelo andar de baixo.
VINCE atira a perna de pau de BRADLEY bem longe para a esquerda do palco. BRADLEY vai se arrastando no chão, choramingando, saindo do palco atrás de sua perna. Quando BRADLEY sai, VINCE puxa o cobertor dele e coloca-o sobre os próprios ombros. Vai até DEWIS com o cobertor e cheira as rosas. DEWIS desce até o fim da escada.
DEWIS – Melhor você subir para ver a sua avó.
VINCE (olha para cima da escada e de volta para DEWIS) – Minha avó? Não tem mais ninguém nesta casa. A não ser o senhor. Mas o senhor está saindo, não está?
DEWIS vai até a porta da direita do palco. Volta-se para VINCE.
DEWIS – Ela vai precisar de alguém. Eu não posso ajudar. Não sei o que fazer. Não sei qual é a minha posição. Só vim aqui para tomar chá. Não fazia idéia que ia haver confusão. Não fazia idéia.
VINCE apenas o encara. DEWIS sai pela porta, atravessa a varanda e sai para a esquerda. VINCE fica ouvindo ele sair. Cheira as rosas, olha para o alto da escada e torna a cheirar as rosas. Volta-se e olha para DODGE. Vai até ele e curva-se para olhar os olhos abertos de DODGE. DODGE está morto. A morte dele deve passar completamente despercebida pela platéia. VINCE cobre o corpo de DODGE com o cobertor, depois cobre sua cabeça. Senta-se no sofá, cheirando as rosas e olhando o corpo de DODGE. Longa pausa. VINCE coloca as rosas sobre o peito de DODGE, depois deita-se no sofá, com os braços dobrados por trás da cabeça, olhando para o teto. Seu corpo está na mesma relação do corpo de DODGE. Depois de um momento ouve-se a voz de HALIE vindo do alto da escada. As luzes começam a baixar quase imperceptivelmente enquanto HALIE fala. VINCE continua olhando o teto.
Voz de HALIE – Dodge? É você, Dodge? Tilden tinha razão sobre o milho, sabe? Nunca vi tanto milho. Você ainda não viu não, não é? Já está da altura de um homem. E tão cedo. Cenouras também. Batatas, ervilha, parece um paraíso lá fora, Dodge. Você devia dar uma olhada. Um milagre. Nunca vi uma coisa dessas. Talvez a chuva tenha feito alguma coisa. Talvez tenha sido a chuva;
Enquanto HALIE continua falando fora do palco, TILDEN aparece pela esquerda, pingando lama dos joelhos para baixo. Seus braços e mãos estão cobertos de lama. Traz nas mãos, à altura do peito, o cadáver de uma criança pequena, olhando para ele. O cadáver consiste, sobretudo, de ossos embrulhados em trapos rotos e enlameados. Lentamente ele avança para a escada, ignorando VINCE no sofá. VINCE continua olhando para o teto como se TILDEN não estivesse ali. A voz de HALIE continua enquanto TILDEN sobe lentamente os degraus. Seus olhos não se afastam nunca do cadáver da criança. As luzes continuam baixando.
Voz de HALIE – Chuvão forte. Penetra direto até as raízes lá no fundo. O resto acontece por si. Não se pode forçar uma coisa a crescer. Não se pode interferir. É tudo secreto. Tudo invisível. Só dá para esperar aquilo começar a brotar da terra. Um brotinho pequenininho. Um brotinho pequenininho branquinho. Todo peludo e frágil. Mas forte. Bem forte para ser capaz de romper até a terra. É um milagre, Dodge. Nunca vi uma safra como esta na minha vida inteira. Vai ver que foi o sol. Vai ver que foi isso. Vai ver que foi o sol.
TILDEN desaparece lá
[Encontro Setembro 2008 coordenação: Fabiano]
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