"Pentimento" é o processo de pintar, camada após camada, sobre pinturas antigas, e esse foi o processo da autora de The Little Foxes, na criação de Julia: imaginou que estava dentro de um trem gelado, a caminho da Alemanha hitlerista, para levar a absurda "caixa de chapéu", forrada com 50 mil dólares, para a amiga de escola pela qual ainda se sentia atraída.
Fábula por fábula, é por isso que estamos aqui, agora, a falar de um filme admirável e de uma mentira que, bem ou mal, reforçou o material de um ótimo livro (além de que, sem Pentimento, Muriel Gardiner Buttinger talvez fosse ser lembrada apenas como uma "socialite" com algum vago passado de estudos em Viena, até retornar - correndo - para a América, em 1939).
Lillian Hellmann foi também a autora de peças teatrais de muito sucesso: The children's hour, com sua ousada sugestão de lesbianismo (nos anos 30), é ainda atração, vez ou outra, nos palcos americanos, além de ter tido duas versões cinematográficas, ambas assinadas por William Wyler, mestre do cinema que foi amigo da escritora nascida em 1906, filha de Julia Newhouse e Max Hellman. Para o teatro, ela escreveu também as aclamadas Watch on the rhine, The autumm garden e Toys in the attic.
Seu único fracasso no palco -- My mother, My father and Me - levou-a a abandonar o teatro, em 1963, para se dedicar aos relatos e aos roteiros de filmes como Caçada humana, de Arthur Penn. Em muito do seu trabalho, sente-se o dedo do escritor Dashiell Hammett - com quem Lillian viveu por mais de trinta anos -, tanto nos diálogos quanto em algumas situações dramatúrgicas bem desenvolvidas, com a intriga desdobrada como num bom romance policial. E fica nisso. Hammett de modo algum "escrevia as coisas de Lillian", como os fanáticos de "Dash" gostam de acreditar.
Quando o velho Hammett teve de comparecer perante o comitê da "Caça às Bruxas" (título de um dos polêmicos livros de Hellman), a escritora mais jovem virou uma leoa ferida e, ao chegar a sua vez, teve a atitude inédita entre todos os convocados: recusou-se a falar "a não ser de si mesma". Disse isso por escrito, ao mais que temível Comitê, avisando que não mencionaria nome algum, de amigo ou de inimigo - o que abriu caminho para a "ousadia" de outros. A mesma coragem que Lillian Florence já revelara ao se engajar, anos antes, na luta pela Causa Republicana, durante o desastre da Guerra Civil espanhola (cujo front ela visitou, naquelas levas de intelectuais atraídos, em 1936, para Madrid, Barcelona e outras cidades da península, a fim de "fazerem alguma coisa", fosse no volante de uma velha ambulância ou nas montanhas idealizadas pelos romances hollywoodianos de Hemingway).
Un unfinished woman é o seu relato autobiográfico mais conhecido, talvez por tratar da relação com Dashiell e da amizade com Dorothy Parker e outras celebridades que a autora madura retrata com paleta de aquarelista, trabalhando sobre alguns estudos de artista delicada. Uma mulher inacabada foi o livro distinguido, em 1970, com o National Book Award, e dele saímos com a sensação de haver percorrido a Sibéria remota (Lillian viajou por lá - realmente - a convite de Stalin) ou que trabalhamos com Wyler, num agradável terraço de hotel com vista para as ruínas do Fórum iluminado pelos tons dourados do entardecer romano.
No final da vida, Miss Hellman se interessava pela memória, menos para confiar do que para duvidar do que guardamos nessa caixa de surpresas. "O que retemos? O que perdemos, enquanto preservamos só uma parte das coisas? Aquilo de fato aconteceu naquela Villa toscana, debaixo do guarda-sol agora enferrujado num canto de jardim? Quem era o hóspede que acabou de sair? E que cidade é esta?"...
Essas são algumas das perguntas de fundo - esperadas e inesperadas - de Maybe, o pequeno livro de sessenta e poucas páginas que foi o último publicado por Lillian Hellman, em 1980. Nele, a busca do tempo perdido talvez se transforme na procura do tempo duvidoso que subsiste, de variadas formas, às vezes na mesma memória desconcertada.
Quatro anos depois, viria a falecer, ainda polêmica e ativa aos 79 anos, na casa de praia onde morava - com absoluta necessidade "de ver e ouvir o mar" - no elegante balneário de Martha's Vineyard, Massachusetts.
( Lillian Hellman - retrato de uma americana; extraido de: http://rascunho.rpc.com.br/)
O conto A tartaruga foi extraído de PENTIMENTO – um livro de retratos (1981, esgotado). À medida que o tempo passa, a tinta velha em uma tela muitas vezes se torna transparente. Quando isso acontece, é possível ver, em alguns quadros, as linhas originais: através de um vestido de mulher surge uma árvore, uma criança dá lugar a um cachorro e um grande barco não está mais em mar aberto. Isso se chama pentimento, porque o pintor se arrependeu, mudou de idéia. Talvez fosse possível dizer que a antiga concepção, substituída por uma imagem posterior, é uma forma de ver, e ver de novo, mais tarde. Essa é minha única intenção a respeito das pessoas neste livro. A tinta ficou velha e quis ver como me pareciam antigamente e como me parecem agora (Lillian Hellman, na abertura do livro).
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.