quarta-feira, 25 de março de 2009
Resíduos VIII Conversa com Lorca (e Fabiano)
Coloca-me,
como sinete sobre teu coração
como sinete em teu braço.
Pois o amor é forte, é como a morte[i].
Durante o silêncio da escrita, deixa-se acompanhar
pelas vastidões de Mozart, pelas lentidões de Mahler.
(A música não deve morrer, vai perdurar além do fim do mundo!)
Depois de 7 anos, desliga o toca-discos e
abrem-se as comportas de um dique.
Uma linguagem alegórica, contundente,
investiga o enigma, o fundo do poço:
a mulher quer perfurar
o mistério divino que limita a escrita.
Não se transformam os temas,
expandem-se, entretanto,
por sua duração no tempo.
(Dentro do círculo/Faço-me extensa/
Procuro o centro/me distendendo[ii].)
A plena comunhão erótica culmina
na imagem hierogâmica, de sacerdotisa
cumprindo ritual: a Mulher conta ao
Homem a verdade da experiência amorosa.
(Olhei-me a mim, como se tu me olhasses[iii].)
A mulher, durável refúgio, quer despertar
para o encontro, o movimento escorregadio do homem.
Permanência e fluidez = mulher—poeta.
Do Amor caminha para a Morte, e
anula falsas distâncias ao tocar
com ousada intimidade a poderosa figura,
participante indispensável da Vida.
(Te sei/ com a boca viva/ provei/
Em vida, morte, te sei/ Juntas. Tu e eu[iv].)
Aproxima-se dela o tempo em que os frutos
do sagrado serão recolhidos: enquanto isso,
são as centelhas dessa luz encoberta
na poesia, nas palavras.
Não interrompe a procura, até que se diluam
as fronteiras enganosas entre o erótico e o místico.
O Desejado é o verdadeiro Deus,
a quem anseia se entregar,
como um dia se entregou ao chamamento do amado.
(Porque vives de mim, Sem Nome[v].)
No húmus do universo criado, toma coragem
e manifesta, patente ou latente,
sua verdade maior: [como fez o grego Kavafis]
rompe a ligação entre Deus e o homem
ao roubar a origem divina do ser humano.
(Como se eu mesma/ flutuasse cativa, ofélica, /
sobre Tua Grande Face[vi].)
Pelo vazio cavado com essa ruptura, a mulher
entrega-se a uma nova e insólita experiência:
Deus e homem descobertos como aspectos
da mesma coisa.
O Novo Sagrado — poderoso, temido,
desejado, atraente como
um abismo, porém
colocado sob seu olhar, entre suas mãos.
(vives em mim, Sem Nome / Porque sei de ti
a tua forma/ tua noite de ferrugem[vii].)
[i] Cântico dos Cânticos, 8, 6.
[ii] Hilda Hilst, Júbilo, memória, noviciado da paixão, 1974.
[iii] Idem, Do amor, 1999.
[iv] Idem, Poemas XXIX, XXX, 1980.
[v] Idem, Sobre tua grande face, 1986.
[vi] Idem.
[vii] Hilda Hilst, Sobre tua grande face, 1986.
[Denise, extraído do seu "Escrito com o Livro de Jó", 2007, III - VI]
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