quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009
Após um soberbo dia de verão
domingo, 22 de fevereiro de 2009
Encontro Março 2009
Francesco di Roma
Por Chico Buarque
No dia seguinte, já tinha sol no jardim da casa e tudo era novidade. Tinha a pastaciutta, o copo de vinho, a Via Nmentana, Villa Torlonia, Porta Pia, o ônibus pela Piazza Fiume, tinha o Cine Capranica, o Cine Capranichetta, tinha a Lollobrigida, tinha Pane, amore e fantasia. E eu corria em bicicleta pelo Viale Grizia, brincava com novos amigos, aprendia belas palavras, como cálcio di rigore (penalti), rovesciatta (rebatida), Sampdoria (clube de Gênova), Sentimenti IV (goleiro do Juventus), e palavrões que ensinava às minhas irmãs. Minha mãe conhecia bastante bem o italiano, mas não os jogadores de futebol e palavrões, e meu pai tinha um acerto acento napolitano, porque imitava Roberto Murolo ao cantar Amena e Core. Papai tinha também uma professora de italiano, e eu me lembro bem do dia em que a apresentou à família, mais ou menos com o mesmo orgulho com que nos tinha introduzido naquele palazzo frio, empoeirado e meio arruinado. A signorina, porém, era muito jovem, viçosa, luminosa, a pele muito clara, os cabelos muito negros, os olhos enormes, e ao olhá-la compreendi logo a palavra desiderio (desejo).
Tinham me explicado que a Itália era um país pobre, apenas saído de uma guerra atroz. Não nos faziam estudar numa escola italiana porque o ensino não era satisfatório, assim diziam. Fomos matriculados na Notre Dame International School, e eu pensava sempre no meu pai que, vindo de tão longe, talvez não fosse um professor satisafatório ou dava lições numa péssima Scola. A minha casa era uma escola onde se falava em inglês, lia-se Mark Twain e se jogava beisebol. Quando a bolinha era atirada fora dos muros, coisa que acontece a cada minuto naquele esporte bizarro, cabia a mim procurá-la na Vila Aurelia ou pedi-la ao jardineiro da casa vizinha. Quase todos os meus colegas eram meninos norte-americanos que não tinham o hábito ou a necessidade de falar a língua dos outros. Ali também fiz algumas amizades, mas na verdade não amava tanto a escola americana, porque lá dentro me sentia mais estrangeiro do que na rua. De fato, para os meus colegas, eu, um certo Francisco, originário do Brasil, era italiano e me chamava Francesco.
Em janeiro de 1969, quando voltei a Roma, reencontrei os monumentos, os palazzi, as fontanne (fontes), os viali (avenidas), tudo ali, tudo igual às minhas recordações, somente um pouco menor. Logo na primeira manhã caminhei pelas ruas da minha infância, certo de poder rever os mesmos personagens de tantos anos atrás, talvez pequeninos eles também. Senti-me porém como o míope de Italo Calvino, encontrando rostos desconhecidos ou cumprimentando gente que não me respondia. À hora do almoço, perdi-me num labirinto perto do Pantheon. Vaguei pelos becos desertos, entre casas amarelas com portas e janelas fechadas, depois me encontrei numa praça com a estátua de um elefante, e à sombra de uma igreja tinha um carabinieri (soldado) que dormia sentado no cavalo. Despertei o carabinieri, porque precisava de uma indicação, mas em seguida permaneci mudo. Vinham-me à mente palavras soltas como Sampdoria, cálcio d’angolo (escanteio), e naquele momento me dei conta de que não sabia mais falar o italiano. Humilhado, voltei ao hotel, onde minha mulher, grávida, falava ao telefone com o Rio de Janeiro. As notícias do Brasil não eram maravilhosas, de modo que minha permanência no exterior, prevista para três semanas, devia se prolongar por uma duração incerta. Estabeleci-me em Roma, deixando o Albergue Raphael por um bairro que parecia mais um subúrbio do Rio.
Roma, a sentia agora mais dura, como se suspeitasse de que nela vivia pensando numa outra. Era verdade, mas ao mesmo tempo estava sinceramente decidido a não pensar mais na minha cidade. O meu coração queria pensar em Roma, somente Rom. Gravei um disco em italiano quase sem acento, fui ao rádio e à televisão, cantei no meio da Piazza Navona, mas Roma não me compreendeu. Inventei um samba em dialeto romanesco, mas Roma não é boba. Disse a Roam que no Rio não me queriam, disse-lhe que não podia viver assim no ar, sem uma cidade. Era ridículo, queria desesperadamente que Roma me aceitasse. Então ofereci a Roma minha primogênita.
Minha filha Silvia nasceu romana no fim de março, e Roma mandou à Clínica Moscati dois poetas. Vinicius de Morais fez uma enfermeira gravar o primeiro choro da criança. E à mãe ainda adormecida, Giuseppe Ungaretti dizia: ‘Bella, bellla!”. Depois Roma me acolheu no Piazzele Flaminio, num apartamentinho com um balcãozinho de onde se via a Villa Borghese. Dali saía a pé pela Via Del Corso, Piazza Colonna, o Cine Capranica, o Cine Capranichetta e daí pela Vila Tritone, Fontana de Trevi e o restaurante Al Moro, do qual uma noite vi sair Federico Fellini e emudeci, porque e pareceu que viesse a cavalo. Nesta cidade vivi ainda um ano e meio, e aqueles que não podiam ser os temps mais felizes da minha vida. Mas com o consenso de Roma, nela vivi um tempo que, em outra parte, teria sido invivível.
Em Flumicino (aeroporto romano), o policial olha a torna a olhar cada folha do meu passaporte, sacode a cabeça, procura o meu nome no computador, chama alguém pelo telefone. Já esperava toda essa operação. Estamos em um país rico e o meu documento é sempre aquele de um cidadão sul-americano. Fecha o passaporte, reabre o passaporte, me observa e observa a foto, na qual nem eu mesmo me reconheço, porque me vejo com a cara do meu pai quando veio ensinar na Universidade de Roma. “Músico” exclama enfim o policial, e de repente se põe a tocar um tambor imaginário. Revela-me que ele também é um contrabaixista diletante, e me restitui o passaporte dizendo-se um fã da nossa música, a música étnica! “Música latina”, acrescenta, e me diverte saber que no coração do Lácio se chama latina uma música tão estranha. Giro afora pelo aeroporto que não recordava tão grande. Depois de 30 anos o ampliaram, sem dúvida, mas é possível também que com o tempo os objetos da memória comecem a comprimir-se, como se estivessem dentro de um ônibus superlotado. Quando consigo pegar minha maleta, que rodava também solitária no aeroporto, me vejo diante de uma jovem com um sorriso que me é familiar. É uma signorina tão viçosa, tão luminosa, com a pele tão clara, os cabelos tão negros, os olhos tão grandes, que poderia ser uma professoressa de italiano. Mas ao contrário é a agente de turismo que me pergunta: ‘may I help you?’. No grazie, le dico, Il mio nome éFrancesco.
(sem data, sem fonte...achei entre papéis num caixa... Denise)
Resíduos V
Quando descansou do livro, lembrou-se da carta da mulher, a outra enfim distante, e foi tomado pelo alívio. Há quanto tempo não se sentia desse jeito, somente em sua própria companhia?
Aquela fora uma mulher plena de palavras, tantas vezes implacável em sua busca obsessiva pela clareza, pela verdade. Coisa atroz essa necessidade de consciência em uma mulher! Foi assim que seu desejo pelo corpo dela extinguiu-se, lembra-se do exato momento em que se quebrou dentro dele a fascinação, que imaginara eterna, por aquelas costas em tons de oliva, ah! perfeitas. Olhou e conteve a mão que domesticada já se estendia. Ela coração clarividente de imediato soube.
Entraram juntos no tempo que não é mais. Juntos viveram em dolorosa solidão a espera do que ainda não é.
Exausto pela breve memória, retoma a leitura, ansiando por palavras de outros mundos. Na verdade, este homem sempre ansiara por ler, nunca por ser lido.
(Imagem: Hopper, O homem e a leitura)
[Escrito por Denise após a troca de 'cartas' com o amigo Dan]
Resíduos IV
Carissimo,
Entendo seu susto mas me falta a paciência. Já lhe disse certa vez, homens são como troncos e, mulheres, nós somos como folhas. O silêncio masculino é o de quem deseja falar, mas não pode. Derrubado por um tronco, o coração da folha batendo uma só palavra: tum-pusilânime-tum. Com essa imagem árborea! foi que saí finalmente da cama ainda morna e me vesti da paisagem que sonhava em frente à janela. Vê esses vestígios do pincel riscando a areia? Por ali passaram conchas arcanas esfoliando a memória de um tempo que não é mais. Descubro que estou pobre. Dentro de mim não existe saudade de ninguém. Não sei mais quem sou gostando mais dessa que ainda não conheço. Não é tão ruim afinal. Estando pobre, sempre posso enriquecer. O poeta estava dizendo das coisas poderosas e permanentes mas o poeta não falava de gente, falava da água e do vento. Hoje escrevo para confirmar a não existência de você. Vazia a fonte onde bebi com sofreguidão. Não há ausência, não há presença. Apenas eu em lugar nenhum. Assinado: Denise
(Imagem: Hopper, Spends the summer painting with Jo)
[Escrito por Dan e Denise, depois do encontro com Cortázar]
Resíduos III
Eu fiquei sem saber o que dizer, inicialmente – intermediariamente também! Eu li o conto direto, sem pausas, sem café, sem ovos cozidos, sem cheiro de couve-flor fervida. Li em português e em espanhol.
Ainda não sei descrever as suburbanas imagens a que este conto me remete. Não há luz natural nas imagens que me veêm. Pouca luz. Mas gosto disso, porque me sinto melhor do que numa localidade bem iluminada, “cosmopolita”. Não vejo Paris nas descrições. E isso veio à tona na conversa de ontem numa fala da Denise e do ZP. Eu nunca saí do meu país, mas minhas imagens são descrições de turista...
Simpatizei com Billy, acho-o tão “inocente” com seus desejos, que o rastro de sangue sobre a neve seja a revelação de uma cegueira emocional. Ele sabe, em alguma instância, que é escolhido. E age como tal (aliás, adorei a teoria do ZP!!!).
Nena Daconte tem sobrenome de loja de luxo do Shopping Morumbi (porque no Iguatemangue eu duvido que fique bem uma DASLU, DIOR, DACONTE...). Mas, tirando toda associação de mocinha babaca que entra nessas lojas e acha que arrasa, ela é fantástica. Quem começa um conto sangrando e termina morta com tanta graça? Somente Daconte.
Não sei mais...
A tradução podia ser pior, tendo em vista que o feitor manteve limpo e fluido em nosso complicadíssimo idioma o andamento nebuloso do conto.
É belo e conquistador esse conto.
E confesso que ler foi uma sensação tão prazerosa quanto ouvir a leitura do ZP e os comentários sobre ele.
[Escrito por Fabiano depois do encontro com Garcia-Marquez]
Resíduos II
01 de agosto 02h15
O conto é um sonho.
02 de agosto 13h10
Recuso a psicanálise, acredito no Talmude, o sonho é sua própria interpretação.
03 de agosto 17h01
[Deus não é neutro, nem é Ele uma abstração.]
04 de agosto 23h50
Nena e Billy, duas almas em fogo.
05 de agosto 14h29
A viagem serve para desenhar a história da conversão dos personagens.
06 de agosto 0h20
A matéria aquosa tornou-se gelo nevado, o envoltório trouxe brumas ao sonho, dando início ao rito que levaria os amantes ao seu destino individual.
07 de agosto 12h00
Não há mais sangue, entre alvos lençóis e paredes, a Nena resta a memória da neve tocada por seus olhos violeta. No banheiro do hotel, sob a torneira vacilante, o marido retira a última mancha do vison branco. E o fogo, nunca mais.
Resíduos I
O rastro que deixa o rastro
do teu (dela) sangue na neve e
o percurso que segue o rastro.
1.
Numero um
Senta na livraria e lê, acaba e lê de novo. Compra um caderno pensando na imagem “Olhos de pássaro”.
Numero zero
Já leu esse conto, uma das primeiras vezes que agarrou a literatura pelo pescoço foi com
Agarrar a literatura pelo pescoço foi um pouco lento, pegou ela e engoliu-a como um perfume pelos ouvidos com o objetivo de segurá-la enquanto era exalada pelos lábios do dono da cama em que descobrira o mundo.
Achou o mundo fantástico, e o autor fazia parte do mundo. (Entre os perfumes também veio Julio [Cortázar], e entre mundo e mundo vieram infinitos dilúvios de mundo).
Numero dois
Vai para o café onde dá para fumar e desenha 4 páginas de meninas Olhos de pássaro.
Desiste.
Com o alivio que produz a desistência desenha mais uma pagina: gotas na margem esquerda caindo até o chão (da pagina).
Como já tinha desistido mesmo e não têm nada a perder desenha mais duas paginas.
Percebe que a expressão mesmo é “Olhos de pássaro feliz” e se sente triste: A felicidade do pássaro muda completamente a história.
Engana a si mesma afirmando que desde o começo tinha percebido que a frase certa era olhos de pássaro feliz.
Gosta do ultimo desenho e compondo o rabisco escreve: OJOS DE PÁJARO FELIZ (porém quase morrendo), acha engraçado ter misturado as duas línguas, mas não vai apagar, deu bastante trabalho.
0.1
Numero zero ponto um
“O rasto do teu sangue na neve trata sobre uma mulher que morre desangrada porque é picada por uma flor que têm a mesma cor do sangue”.
Gostava de contar essa história, acha bonita a idéia da vida escorrendo por um furo minusculamente pequenininho.
3.
Numero três
Sorri pensando em limpar a poeira do quarto mnemônico onde estava guardado o conto, e como estava esperando, a história muda completamente.
Acontece que a mulher é uma menina e têm um nome, Nena Daconte, e mesmo que Nena não seja um nome, não importa, afinal vai acabar esquecendo o nome.
0.2
Numero zero ponto dois
Pergunta se é possivel escrever literatura repetindo varias vezes a mesma palavra em frases continuas, o pai diz que sim pois “
Numero quatro
O Billy Sanchez –que nomezinhos feios, bem coisa de colombiano- deve ser um babaca, se ela conhecesse ele na vida real ia falar mal dele para todo mundo. (Um novo amor platônico para entrar na lista).
Numero cinco
Da risada e se sente maravilhada, o autor consegue fazer com que o furinho modifique completamente a Nena. É assim mesmo que acontece quando alguém esta doente.
0.3
Numero zero ponto três
Na casa da tia avô, que visita uma vez cada dois anos, lê uma declaração sobre a relação do autor com a morte.
Ela morre de medo da morte.
Ele bebe cerveja conversando com a morte.
Numero seis
O abrigo de pele deve ser da mesma cor da neve.
Deve ser bonito o sangue sobre a neve.
Numero sete
Estava tudo errado. A história é sobre um cara que por andar pensando em coisas sem importância passa a vida enteira sem perceber que as flores enfiam os dentes em qualquer dedo que as segura sem delicadeza, podendo ferir a vitima de morte.
8.
Numero oito
Estava tudo errado de novo. A história é sobre um cara obrigado a conhecer uma cidade estrangeira.
Numero nove
A história é sobre um cara que fica olhando para o papel de parede.
No papel de parede está desenhada a seqûencia enteira da sua vida, ele sabe disso mas é impossivel fazer parte do desenho (onde REALMENTE acontece sua vida) porque ele é uma pessoa e não um desenho.
10.
Numero dez
Na história, um cara que não entende nada sobre cores nem flores volta para Cartagena, encontra o Garcia Marquez e conta detalhadamente sua visita à França. Tudo isso para confessar que apesar de todos os esforços foi impossivel presenciar a morte mais linda do mundo.
[foto: Eriketa]
[Escrito por Erika, depois do encontro com Garcia-Marquez]
Italo Calvino
O escritor Italo Calvino nasceu em 1923, em Cuba, por onde seus pais, cientistas italianos, estavam de passagem. Sua infância foi em San Remo, na Itália. Em 1941, matricula-se na Faculdade de Agronomia de Turim; mas abandona os estudos ao engajar-se na Resistência Italiana contra o exército nazista. Ao final da guerra, Calvino vai morar em Turim, onde se doutora em letras com uma tese sobre Joseph Conrad.
Em 1972, publica Cidades Invisíveis. Se um Viajante numa Noite de Inverno, de 1979, explora com ironia a relação do leitor com a obra literária. Palomar é de 1983. Traduzidos para inúmeras línguas, os três têm lugar de destaque no repertório da literatura pós-moderna da Europa.
Calvino morreu em 1985, em Siena, consagrado como um dos mais importantes escritores italianos do século 20. Entre seus muitos outros livros incluem-se Seis Propostas para o Próximo Milênio, Amores Difíceis e O Castelo dos Destinos Cruzados.
O texto A espada do sol pertence ao livro de Calvino intitulado Palomar, sua última publicação em vida. "PALOMAR é o nome de um famoso observatório astronômico que durante muito tempo ostentou o maior telescópio do mundo. Por intencional ironia, é também o nome do protagonista destes textos curtos de Italo Calvino, pois este SENHOR PALOMAR é todo olhos, mas funciona quase sempre como se fosse um telescópio ao contrário, voltado não para a amplidão do espaço, mas para as coisas próximas do cotidiano. É como se ele nos dissesse que as grandes questões do mundo e da existência também estão presentes em cada objeto que observamos, em cada cena que presenciamos, que tudo a nossa volta é digno de ser interrogado e pensado..." Transcrito da orelha do livro (Ed. Cia das Letras, 1994).
A espada do sol
O reflexo no mar se forma quando o sol descamba: um brilho ofuscante se estende do horizonte até a costa, feito de uma infinidade de cintilações que ondulam; entre uma cintilação e outra, o azul opaco do mar escurece a sua rede. As barcas brancas tornam-se negras contra a luz, perdem consistência e extensão, como que consumidas por aquele pontilhado resplendente.
É a hora em que o senhor Palomar, homem tardio, pratica sua natação vespertina. Entra na água, afasta-se da praia, e o reflexo do sol se torna uma espada cintilante na água que do horizonte se prolonga até ele. O senhor Palomar nada na espada ou, melhor dizendo, a espada permanece sempre diante dele, retraindo-se a cada uma de suas braçadas e jamais se deixando alcançar. Por todo o espaço em que ele estende os braços, o mar adquire seu opaco tom vespertino, que se alonga até a praia atrás dele.
Enquanto o sol desce para o ocaso, o reflexo branco incandescente se colore de ouro e cobre. E seja onde for que o senhor Palomar se coloque, o vértice daquele triângulo agudo e dourado é ele; a espada o segue, indicando-o como um ponteiro de relógio que tivesse por eixo o sol.
“É uma homenagem especial que o sol me presta”, é tentado a dizer o senhor Palomar, ou melhor, o eu egocêntrico e megalômano que nele habita. Mas o eu depressivo e autopunitivo que coabita com o outro no mesmo contentor objeta: “Todos os que têm olhos vêem o reflexo que os segue; a ilusão dos sentidos e da mente os mantém sempre prisioneiros”. Um terceiro condômino intervém, um eu mais equânime: “Quer dizer que, seja como for, faço parte dos indivíduos que sentem e pensam, capazes de estabelecer uma relação com os raios solares, e de interpretar e avaliar as percepções e as ilusões”.
Todo banhista que a esta hora nade em direção ao poente vê a nesga de luz que se dirige para ele e que se extingue pouco além do ponto a que sua braçada o leva: cada um deles tem o seu reflexo, que só para ele tem aquela direção e se desloca com ele. De ambos os lados do reflexo, o azul da água é mais escuro. “Será esse o único dado não ilusório, comum a todos, a escuridão?”, indaga-se o senhor Palomar. Mas a espada se impõe igualmente aos olhos de cada um deles, não há como fugir dela. “O que temos em comum será justo aquilo que é dado a cada um como exclusivamente seu?”
As pranchas a vela deslizam na água, cortando com abordagens oblíqüas o vento de terra que se ergue a essa hora. Figuras eretas mantêm a retranca com braços esticados como arqueiros, contendo o ar que estaleja contra a tela. Quando atravessam o reflexo eis que, em meio ao ouro que as envolve, as cores da vela se atenuam e é como se o perfil dos corpos opacos entrasse na noite.
“Tudo isso acontece não no mar, nem no sol”, pensa o nadador Palomar, “mas dentro da minha cabeça, nos circuitos entre os olhos e o cérebro. Estou nadando em minha mente; é apenas ali que existe esta espada de luz; e o que me atrai é precisamente isto. Este é o meu elemento, o único que poderei de certa forma conhecer”.
Mas pensa também: “Não posso alcançá-la, está sempre além, não pode ser ao mesmo tempo algo dentro de mim e algo em que eu nado, se a vejo permaneço fora dela e ela permanece fora”.
Suas braçadas começam a ficar mais difíceis e incertas: dir-se-ia que todo o seu raciocínio, em vez de aumentar-lhe o prazer de nadar no reflexo, o estivesse deprimindo, como que o fazendo sentir nisso um limite, ou uma culpa, ou uma condenação. E também uma responsabilidade a que não pode fugir: a espada existe só porque ele está ali; se ele fosse embora, se todos os banhistas voltassem para a praia, ou simplesmente virassem as costas ao sol, onde acabaria a espada? Do mundo que se desfaz, o que gostaria de salvar é a coisa mais frágil: aquela ponte marinha entre seus olhos e o sol poente. O senhor Palomar já não tem vontade de nadar, está com frio. Contudo, continua: agora tem que ficar na água para que o sol não desapareça.
Então pensa: “Se vejo e penso e nado no reflexo, é porque no outro extremo está o sol lançando seus raios. Só conta a origem do que é: algo que meu olhar não pode suster senão de forma atenuada como neste entardecer. Todo o resto é reflexo entre reflexos, inclusive eu”.
Passa o fantasma de uma vela; a sombra do homem-árvore desliza entre as escamas luminosas. “Sem o vento, essa geringonça que funciona graças a uns nós de plástico, ossos e tendões humanos, escotas de náilon, não se manteria de pé; é o vento que faz dela uma embarcação que parece dotada de uma finalidade própria e de um intuito; é só o vento que sabe para onde vai a prancha e o surfista”, pensa ele. Que alívio se conseguisse anular seu eu parcial e duvidoso na certeza de um princípio do qual tudo deriva! Um princípio único e absoluto do qual têm origem os atos e as formas? Ou antes, um certo número de princípios distintos, linhas de força que se entrecruzam dando uma forma ao mundo tal como ele aparece, único, instante por instante?
“... o vento e também, está implícito, o mar, a massa de água que sustenta os sólidos que bóiam e flutuam, como eu e a prancha”, pensa o senhor Palomar bancando o morto.
Seu olhar voltado para cima contempla agora as nuvens vagantes e as colinas nebulosas dos bosques. Seu eu também está ao revés dos elementos: o fogo celeste, o ar que corre, a água que berça e a terra que sustenta. Seria isso a natureza? Mas nada do que se vê existe na natureza: o sol não se põe, o mar não tem aquela cor, as formas não são as que a luz projeta na retina. Com movimentos das articulações ele flutua entre os espectros; lastros humanos em posições inaturais deslocando seu peso desfrutam não o vento mas a abstração geométrica de um ângulo entre o vento e a inclinação de um maquinismo artificial, e assim resvalam na pele lisa do mar. A natureza não existe?
O eu flutuante do senhor Palomar está imerso num mundo desincorporado, intersecções de campos de forças, diagramas vetoriais, feixes de retas que convergem, divergem, se refrangem. Mas dentro dele permanece um ponto onde tudo existe de outro modo, como um nó, um coágulo, um obstáculo: a sensação de que está aqui mas poderia não estar, num mundo que poderia não ser mas é.
Uma onda intrusa turva o mar liso; um barco a motor irrompe e segue além expandindo um cheiro de combustível e soerguendo a barriga chata. O véu de reflexos untuosos e cambiantes de combustível se desfaz flutuando dentro da água; aquela consistência material que desaparece no ofuscamento do sol não pode ser posta em dúvida por esse traço da presença física do homem, que asperge sua esteira de perdas de combustível, resíduos não assimiláveis, misturando e multiplicando a vida e a morte em torno de si.
“Este é o meu habitat”, pensa Palomar, “e não é uma questão de aceitá-lo ou excluí-lo, pois só neste meio posso existir”. Mas e se a sorte da vida sobre a terra já tivesse sido traçada? Se a corrida em direção à morte se tornasse mais forte do que qualquer possibilidade de recuperação?
A onda escorre, vagalhão solitário, até não alcançar mais a praia; e o que parecia ser apenas areia, cascalho, algas e minúsculas conchas de crustáceos, com a retirada da água agora se revela um limbo de praia constelado de frascos, caroços, preservativos, peixes mortos, garrafas de plástico, sandálias rasgadas, seringas, manchas negras de óleo.
Arrastado também pela onda do barco a motor, envolvido pela maré de escórias, o senhor Palomar de súbito se sente detrito entre os detritos, cadáver rolado sobre as praias-imundícies dos continentes-cemitérios. Se nenhum outro olhar, a não ser o olhar vidrado dos mortos, se abrisse sobre a superfície do globo terrestre, a espada não tornaria mais a brilhar.
Pensando bem, tal situação não é nova: já durante milhões de séculos os raios de sol pousaram sobre a água antes que existissem olhos capazes de recolhê-los.
O senhor Palomar nada embaixo da água; emerge; eis a espada! Um dia um olho saiu do mar, e a espada, que já estava ali à sua espera, pôde finalmente ostentar toda a esbelteza de sua ponta aguda e seu fulgor cintilante. Tinham sido feitos um para o outro, a espada e o olho: e talvez não tenha sido o nascimento do olho que tenha feito nascer a espada, mas vice-versa, porque a espada não podia recusar um olho que a observasse de seu vértice.
O senhor Palomar pensa no mundo sem ele: aquele inexistente antes de seu nascimento; e aquele bem mais escuro depois de sua morte; procura imaginar o mundo antes dos olhos, de qualquer olho; e o mundo que amanhã por uma catástrofe ou lenta corrosão se torne cego. O que ocorreria (ocorre, ocorrerá) naquele mundo? Pontual, um dardo de luz parte do sol, reflete-se no mar calmo, cintila no tremular da água, e eis que a matéria se torna receptiva à luz, diferencia-se dos tecidos vivos, e de repente um olho, uma multidão de olhos floresce, ou refloresce...
Agora todas as pranchas de surfe estão estiradas sobre a praia e até mesmo o último banhista tiritante – de nome Palomar – sai da água. Está convencido de que a espada existirá mesmo sem ele: finalmente enxuga-se com uma toalha de banho e volta para casa.
[Encontro Fevereiro 2009 coordenação: Soraya]
Julio Cortázar
Filho de pai diplomata, Julio Cortázar nasceu por acaso em Bruxelas, no ano de 1914. Com quatro anos de idade foi para a Argentina. Com a separação de seus pais, o escritor foi criado pela mãe, uma tia e uma avó. Com o título de professor normal em Letras, iniciou seus estudos na Faculdade de Filosofia e Letras, que teve que abandonar logo em seguida, por problemas financeiros. Para poder viver, deu aulas e diversos colégios do interior daquele país. Por não concordar com a ditadura vigente na Argentina, mudou-se para Paris, em 1951. Autor de contos considerados como os mais perfeitos no gênero, podemos citar entre suas obras mais reconhecidas “Bestiário” (1951), “Las armas secretas” (1959), ), “Rayuela”, (1963), “Todos los fuegos el fuego” (1966), “Ultimo round” (1969), “Octaedro” (1974), “Pameos y Meopas” (1971), “Queremos tanto a Glenda (1980) e “Salvo el crepúsculo” – póstumo (1984). O escritor morreu em Paris, de leucemia, em 1984.
(Extraído de: http://www.releituras.com/jcortazar_menu.asp)
O texto Carta a uma senhorita em Paris foi publicado originalmente em "Bestiario" Bom Texto Editora, 2005.