quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Após um soberbo dia de verão

[e os escuros e afetados cravos vermelhos, de cabeça erguida; e as ervilhas-de-cheiro, abertas em seus vasos, roxas, brancas, desmaiadas - como se fosse um pôr-de-sol e raparigas de musselina viessem colher flores de ervilhas e rosas, após um soberbo dia de verão, com o seu céu quase azul-marinho, seus delfínios, seus cravos, suas açucenas; e fosse o momento entre seis e sete em que cada flor - rosa, cravo, íris, lilás - se põe a arder; branco, vermelho, violeta, laranja carregado; cada flor parece queimar-se sozinha; suavemente, puramente, nos canteiros brumosos; e como amava as cinzentas falenas, revoluteando sobre os girassóis, as crepusculares primaveras]
Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf
[Agatha, que diz sempre se lembrar da Denise quando lê VW]

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Encontro Março 2009



Coordenador: Theo
Autor escolhido: Federico Garcia Lorca
Data: 20/03
Local: Ribeirão da Ilha
[foto: Elaine]
Gazel do amor desesperado
A noite não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.
Mas eu irei,
ainda que um sol de lacraias me coma a fronte.
Mas tu virás
com a língua queimada pela chuva de sal.
O dia não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.
Mas eu irei,
entregando aos sapos meu mordido cravo.
Mas tu virás
pelas turvas cloacas da escuridão.
Nem a noite nem o dia querem vir
para que por ti morra
e tu morras por mim.
Lorca, 1936 (Antologia poética, L&PM, 2005)
[ouve-se aí o sonoro embate de desejos em luta no mesmo corpo do homem, um eu-tu juntos em sim e não; um quer e o outro repele; um mergulha, outro escapa - a vontade dilacerada - uma é ilha, uma é continente...]

Francesco di Roma

                                           
Fellini em um café da Via Veneto, Roma, anos 50-60


Por Chico Buarque

 Tinha oito anos em fevereiro de 1953, quando desembarquei em Roma com minha mãe e tantos irmãos. Meu pai já estava aqui há alguns meses, como professor de Estudos Brasileiros. Recordo-me de que era já noite funda quando entramos no palazzo (como os italianos chamam os antigos edifícios) da Via San Mariano, que papai tinha descrito em suas cartas. Achei o apartamento um tanto grande demais, muito velho, muito escuro, muito úmido. E tinha um problema com o aquecimento. Naquela noite, vestido com o capote, debaixo dos cobertores, fiquei imóvel na cama, de olhos abertos.

 

No dia seguinte, já tinha sol no jardim da casa e tudo era novidade. Tinha a pastaciutta, o copo de vinho, a Via Nmentana, Villa Torlonia, Porta Pia, o ônibus pela Piazza Fiume, tinha o Cine Capranica, o Cine Capranichetta, tinha a Lollobrigida, tinha Pane, amore e fantasia. E eu corria em bicicleta pelo Viale Grizia, brincava com novos amigos, aprendia belas palavras, como cálcio di rigore (penalti), rovesciatta (rebatida), Sampdoria (clube de Gênova), Sentimenti IV (goleiro do Juventus), e palavrões que ensinava às minhas irmãs. Minha mãe conhecia bastante bem o italiano, mas não os jogadores de futebol e palavrões, e meu pai tinha um acerto acento napolitano, porque imitava Roberto Murolo ao cantar Amena e Core. Papai tinha também uma professora de italiano, e eu me lembro bem do dia em que a apresentou à família, mais ou menos com o mesmo orgulho com que nos tinha introduzido naquele palazzo frio, empoeirado e meio arruinado. A signorina, porém, era muito jovem, viçosa, luminosa, a pele muito clara, os cabelos muito negros, os olhos enormes, e ao olhá-la compreendi logo a palavra desiderio (desejo).

 

Tinham me explicado que a Itália era um país pobre, apenas saído de uma guerra atroz. Não nos faziam estudar numa escola italiana porque o ensino não era satisfatório, assim diziam. Fomos matriculados na Notre Dame International School, e eu pensava sempre no meu pai que, vindo de tão longe, talvez não fosse um professor satisafatório ou dava lições numa péssima Scola. A minha casa era uma escola onde se falava em inglês, lia-se Mark Twain e se jogava beisebol. Quando a bolinha era atirada fora dos muros, coisa que acontece a cada minuto naquele esporte bizarro, cabia a mim procurá-la na Vila Aurelia ou pedi-la ao jardineiro da casa vizinha. Quase todos os meus colegas eram meninos norte-americanos que não tinham o hábito ou a necessidade de falar a língua dos outros. Ali também fiz algumas amizades, mas na verdade não amava tanto a escola americana, porque lá dentro me sentia mais estrangeiro do que na rua. De fato, para os meus colegas, eu, um certo Francisco, originário do Brasil, era italiano e me chamava Francesco.

 

Em janeiro de 1969, quando voltei a Roma, reencontrei os monumentos, os palazzi, as fontanne (fontes), os viali (avenidas), tudo ali, tudo igual às minhas recordações, somente um pouco menor. Logo na primeira manhã caminhei pelas ruas da minha infância, certo de poder rever os mesmos personagens de tantos anos atrás, talvez pequeninos eles também. Senti-me porém como o míope de Italo Calvino, encontrando rostos desconhecidos ou cumprimentando gente que não me respondia. À hora do almoço, perdi-me num labirinto perto do Pantheon. Vaguei pelos becos desertos, entre casas amarelas com portas e janelas fechadas, depois me encontrei numa praça com a estátua de um elefante, e à sombra de uma igreja tinha um carabinieri (soldado) que dormia sentado no cavalo. Despertei o carabinieri, porque precisava de uma indicação, mas em seguida permaneci mudo. Vinham-me à mente palavras soltas como Sampdoria, cálcio d’angolo (escanteio), e naquele momento me dei conta de que não sabia mais falar o italiano. Humilhado, voltei ao hotel, onde minha mulher, grávida, falava ao telefone com o Rio de Janeiro. As notícias do Brasil não eram maravilhosas, de modo que minha permanência no exterior, prevista para três semanas, devia se prolongar por uma duração incerta. Estabeleci-me em Roma, deixando o Albergue Raphael por um bairro que parecia mais um subúrbio do Rio.

 

Roma, a sentia agora mais dura, como se suspeitasse de que nela vivia pensando numa outra. Era verdade, mas ao mesmo tempo estava sinceramente decidido a não pensar mais na minha cidade. O meu coração queria pensar em Roma, somente Rom. Gravei um disco em italiano quase sem acento, fui ao rádio e à televisão, cantei no meio da Piazza Navona, mas Roma não me compreendeu. Inventei um samba em dialeto romanesco, mas Roma não é boba. Disse a Roam que no Rio não me queriam, disse-lhe que não podia viver assim no ar, sem uma cidade. Era ridículo, queria desesperadamente que Roma me aceitasse. Então ofereci a Roma minha primogênita.

 

Minha filha Silvia nasceu romana no fim de março, e Roma mandou à Clínica Moscati dois poetas. Vinicius de Morais fez uma enfermeira gravar o primeiro choro da criança. E à mãe ainda adormecida, Giuseppe Ungaretti dizia: ‘Bella, bellla!”. Depois Roma me acolheu no Piazzele Flaminio, num apartamentinho com um balcãozinho de onde se via a Villa Borghese. Dali saía a pé pela Via Del Corso, Piazza Colonna, o Cine Capranica, o Cine Capranichetta e daí pela Vila Tritone, Fontana de Trevi e o restaurante Al Moro, do qual uma noite vi sair Federico Fellini e emudeci, porque e pareceu que viesse a cavalo. Nesta cidade vivi ainda um ano e meio, e aqueles que não podiam ser os temps mais felizes da minha vida. Mas com o consenso de Roma, nela vivi um tempo que, em outra parte, teria sido invivível.

 

Em Flumicino (aeroporto romano), o policial olha a torna a olhar cada folha do meu passaporte, sacode a cabeça, procura o meu nome no computador, chama alguém pelo telefone. Já esperava toda essa operação. Estamos em um país rico e o meu documento é sempre aquele de um cidadão sul-americano. Fecha o passaporte, reabre o passaporte, me observa e observa a foto, na qual nem eu mesmo me reconheço, porque me vejo com a cara do meu pai quando veio ensinar na Universidade de Roma. “Músico” exclama enfim o policial, e de repente se põe a tocar um tambor imaginário. Revela-me que ele também é um contrabaixista diletante, e me restitui o passaporte dizendo-se um fã da nossa música, a música étnica! “Música latina”, acrescenta, e me diverte saber que no coração do Lácio se chama latina uma música tão estranha. Giro afora pelo aeroporto que não recordava tão grande. Depois de 30 anos o ampliaram, sem dúvida, mas é possível também que com o tempo os objetos da memória comecem a comprimir-se, como se estivessem dentro de um ônibus superlotado. Quando consigo pegar minha maleta, que rodava também solitária no aeroporto, me vejo diante de uma jovem com um sorriso que me é familiar. É uma signorina tão viçosa, tão luminosa, com a pele tão clara, os cabelos tão negros, os olhos tão grandes, que poderia ser uma professoressa de italiano. Mas ao contrário é a agente de turismo que me pergunta: ‘may I help you?’. No grazie, le dico, Il mio nome éFrancesco.

 

(sem data, sem fonte...achei entre papéis num caixa... Denise)

Resíduos V


Quando descansou do livro, lembrou-se da carta da mulher, a outra enfim distante, e foi tomado pelo alívio. Há quanto tempo não se sentia desse jeito, somente em sua própria companhia?

Aquela fora uma mulher plena de palavras, tantas vezes implacável em sua busca obsessiva pela clareza, pela verdade. Coisa atroz essa necessidade de consciência em uma mulher! Foi assim que seu desejo pelo corpo dela extinguiu-se, lembra-se do exato momento em que se quebrou dentro dele a fascinação, que imaginara eterna, por aquelas costas em tons de oliva, ah! perfeitas. Olhou e conteve a mão que domesticada já se estendia. Ela coração clarividente de imediato soube.

Entraram juntos no tempo que não é mais. Juntos viveram em dolorosa solidão a espera do que ainda não é.

Exausto pela breve memória, retoma a leitura, ansiando por palavras de outros mundos. Na verdade, este homem sempre ansiara por ler, nunca por ser lido.

 

(Imagem: Hopper, O homem e a leitura)

[Escrito por Denise após a troca de 'cartas' com o amigo Dan]

Resíduos IV

cariño,
queria poder dizer que você não é real, que não ouve minha voz em meio aos rascunhos que o correio insiste em aceitar como carta. queria fingir que não sou lido no vazio magnético que une as palavras, mas sou mudo para jogos. se escrevo, estou exposto. aqui é o lugar. agora é o momento. se não há escapatória, por que não me solto da plataforma? queria explicar cada palavra do ontem e do hoje, mas não é função primordial de todo escritor expor-se ao risco ser mal compreendido? por que tantas perguntas se o que quero dizer é que sua leitura me desafia a pensar em gramática para fingir que não penso em semântica? respiro para soltar um fio de relato. hoje o papel está mais branco do que de costume. cubo de solidões, cobertor de silêncios, casa vazia. a areia da praia se foi no banho, a visita no ônibus, o dinheiro no mercado, o papel e o lápis ficam. queria que você saísse da cartola para não mais entrar em sua toca. porém o coelho sou eu, não o do travesseiro, não o das fotografias. sou de Alice, o fugidio. se a doninha e o pavão não estavam por perto, você chegou em boa hora para me roubar o relógio de bolso. um querer ser, não sendo, assim vejo essa paródia intimista. toda semelhança é admiração manifesta. toda frase, sopro necessário. cópia para um leitor que não posso fingir ser simulacro. estávamos a três. era com ela que você falava quando lia para mim. era entre você e ela que oscilava minha atenção. são timbres tão diferentes. se ela fala tão bem, você ouve com ainda mais destreza. eram esses ouvidos que ansiavam meus esboços guardados na manga. ela é tão mais forte do que eu, tão mais sincera. a teria entre as mãos se minha reação já não estive mapeada em signo? queria entender cada expressão sua para não precisar fingir que o caipira aqui é esforçado. espontaneidade? não em uma carta sem selo. definições? não em uma história de fraturas. droga, o não é meu escudo desmedido, o porquê, meu cacoete literário. não, não posso dizer não aos desafios, não quero. as histórias não são desculpas, as quero muito. é a elas que procuro proteger com o corpo de texto.  Assinado: Dan

Carissimo,

Entendo seu susto mas me falta a paciência. Já lhe disse certa vez, homens são como troncos e, mulheres, nós somos como folhas. O silêncio masculino é o de quem deseja falar, mas não pode. Derrubado por um tronco, o coração da folha batendo uma só palavra: tum-pusilânime-tum. Com essa imagem árborea! foi que saí finalmente da cama ainda morna e me vesti da paisagem que sonhava em frente à janela. Vê esses vestígios do pincel riscando a areia? Por ali passaram conchas arcanas esfoliando a memória de um tempo que não é mais. Descubro que estou pobre. Dentro de mim não existe saudade de ninguém. Não sei mais quem sou gostando mais dessa que ainda não conheço. Não é tão ruim afinal. Estando pobre, sempre posso enriquecer. O poeta estava dizendo das coisas poderosas e permanentes mas o poeta não falava de gente, falava da água e do vento. Hoje escrevo para confirmar a não existência de você. Vazia a fonte onde bebi com sofreguidão. Não há ausência, não há presença. Apenas eu em lugar nenhum. Assinado: Denise


(Imagem: Hopper, Spends the summer painting with Jo)

[Escrito por Dan e Denise, depois do encontro com Cortázar]

 

 

 

Resíduos III

Eu fiquei sem saber o que dizer, inicialmente – intermediariamente também! Eu li o conto direto, sem pausas, sem café, sem ovos cozidos, sem cheiro de couve-flor fervida. Li em português e em espanhol.

Ainda não sei descrever as suburbanas imagens a que este conto me remete. Não há luz natural nas imagens que me veêm. Pouca luz. Mas gosto disso, porque me sinto melhor do que numa localidade bem iluminada, “cosmopolita”. Não vejo Paris nas descrições. E isso veio à tona na conversa de ontem numa fala da Denise e do ZP. Eu nunca saí do meu país, mas minhas imagens são descrições de turista...

Simpatizei com Billy, acho-o tão “inocente” com seus desejos, que o rastro de sangue sobre a neve seja a revelação de uma cegueira emocional. Ele sabe, em alguma instância, que é escolhido. E age como tal (aliás, adorei a teoria do ZP!!!).

Nena Daconte tem sobrenome de loja de luxo do Shopping Morumbi (porque no Iguatemangue eu duvido que fique bem uma DASLU, DIOR, DACONTE...). Mas, tirando toda associação de mocinha babaca que entra nessas lojas e acha que arrasa, ela é fantástica. Quem começa um conto sangrando e termina morta com tanta graça? Somente Daconte.

Não sei mais...

A tradução podia ser pior, tendo em vista que o feitor manteve limpo e fluido em nosso complicadíssimo idioma o andamento nebuloso do conto.

É belo e conquistador esse conto.

E confesso que ler foi uma sensação tão prazerosa quanto ouvir a leitura do ZP e os comentários sobre ele.

[Escrito por Fabiano depois do encontro com Garcia-Marquez]

Resíduos II

01 de agosto 02h15

O conto é um sonho.

 

02 de agosto 13h10

Recuso a psicanálise, acredito no Talmude, o sonho é sua própria interpretação.

 

03 de agosto 17h01

[Deus não é neutro, nem é Ele uma abstração.]

 

04 de agosto 23h50

Nena e Billy, duas almas em fogo.

 

05 de agosto 14h29

A viagem serve para desenhar a história da conversão dos personagens.

 

06 de agosto 0h20

A matéria aquosa tornou-se gelo nevado, o envoltório trouxe brumas ao sonho, dando início ao rito que levaria os amantes ao seu destino individual.

 

07 de agosto 12h00

Não há mais sangue, entre alvos lençóis e paredes, a Nena resta a memória da neve tocada por seus olhos violeta. No banheiro do hotel, sob a torneira vacilante, o marido retira a última mancha do vison branco. E o fogo, nunca mais.

 

 [Escrito por Denise, depois do encontro com Garcia-Marquez]


Resíduos I


O rastro que deixa o rastro

do teu (dela) sangue na neve e

o percurso que segue o rastro.

1.

Numero um

Senta na livraria e lê, acaba e lê de novo. Compra um caderno pensando na imagem “Olhos de pássaro”.

0.

Numero zero

Já leu esse conto, uma das primeiras vezes que agarrou a literatura pelo pescoço foi com Gabriel Garcia Marquez, o primeiro, na verdade, foi um texto curto (“Si yo fuera usted”) depois de outro (“Nostalgia de la cola”).

Agarrar a literatura pelo pescoço foi um pouco lento, pegou ela e engoliu-a como um perfume pelos ouvidos com o objetivo de segurá-la enquanto era exalada pelos lábios do dono da cama em que descobrira o mundo.

Achou o mundo fantástico, e o autor fazia parte do mundo. (Entre os perfumes também veio Julio [Cortázar], e entre mundo e mundo vieram infinitos dilúvios de mundo).

2.

Numero dois

Vai para o café onde dá para fumar e desenha 4 páginas de meninas Olhos de pássaro.

Desiste.

Com o alivio que produz a desistência desenha mais uma pagina: gotas na margem esquerda caindo até o chão (da pagina).

Como já tinha desistido mesmo e não têm nada a perder desenha mais duas paginas.

Percebe que a expressão mesmo é “Olhos de pássaro feliz” e se sente triste: A felicidade do pássaro muda completamente a história.

Engana a si mesma afirmando que desde o começo tinha percebido que a frase certa era olhos de pássaro feliz.

Gosta do ultimo desenho e compondo o rabisco escreve: OJOS DE PÁJARO FELIZ (porém quase morrendo), acha engraçado ter misturado as duas línguas, mas não vai apagar, deu bastante trabalho.

0.1

Numero zero ponto um

“O rasto do teu sangue na neve trata sobre uma mulher que morre desangrada porque é picada por uma flor que têm a mesma cor do sangue”.

Gostava de contar essa história, acha bonita a idéia da vida escorrendo por um furo minusculamente pequenininho.

3.

Numero três

Sorri pensando em limpar a poeira do quarto mnemônico onde estava guardado o conto, e como estava esperando, a história muda completamente.

Acontece que a mulher é uma menina e têm um nome, Nena Daconte, e mesmo que Nena não seja um nome, não importa, afinal vai acabar esquecendo o nome.

0.2

Numero zero ponto dois

Pergunta se é possivel escrever literatura repetindo varias vezes a mesma palavra em frases continuas, o pai diz que sim pois “Gabriel Garcia Marquez faz muito isso. Não é?”

4.

Numero quatro

O Billy Sanchez –que nomezinhos feios, bem coisa de colombiano- deve ser um babaca, se ela conhecesse ele na vida real ia falar mal dele para todo mundo. (Um novo amor platônico para entrar na lista).

5.

Numero cinco

Da risada e se sente maravilhada, o autor consegue fazer com que o furinho modifique completamente a Nena. É assim mesmo que acontece quando alguém esta doente.

0.3

Numero zero ponto três

Na casa da tia avô, que visita uma vez cada dois anos, lê uma declaração sobre a relação do autor com a morte.

Ela morre de medo da morte.

Ele bebe cerveja conversando com a morte.

6.

Numero seis

O abrigo de pele deve ser da mesma cor da neve.

Deve ser bonito o sangue sobre a neve.

7.

Numero sete

Estava tudo errado. A história é sobre um cara que por andar pensando em coisas sem importância passa a vida enteira sem perceber que as flores enfiam os dentes em qualquer dedo que as segura sem delicadeza, podendo ferir a vitima de morte.

8.

Numero oito

Estava tudo errado de novo. A história é sobre um cara obrigado a conhecer uma cidade estrangeira.

9.

Numero nove

A história é sobre um cara que fica olhando para o papel de parede.

No papel de parede está desenhada a seqûencia enteira da sua vida, ele sabe disso mas é impossivel fazer parte do desenho (onde REALMENTE acontece sua vida) porque ele é uma pessoa e não um desenho.

10.

Numero dez

Na história, um cara que não entende nada sobre cores nem flores volta para Cartagena, encontra o Garcia Marquez e conta detalhadamente sua visita à França. Tudo isso para confessar que apesar de todos os esforços foi impossivel presenciar a morte mais linda do mundo.

[foto: Eriketa]

[Escrito por Erika, depois do encontro com Garcia-Marquez]

Italo Calvino

O escritor Italo Calvino nasceu em 1923, em Cuba, por onde seus pais, cientistas italianos, estavam de passagem. Sua infância foi em San Remo, na Itália. Em 1941, matricula-se na Faculdade de Agronomia de Turim; mas abandona os estudos ao engajar-se na Resistência Italiana contra o exército nazista. Ao final da guerra, Calvino vai morar em Turim, onde se doutora em letras com uma tese sobre Joseph Conrad. 

Em 1972, publica Cidades Invisíveis. Se um Viajante numa Noite de Inverno, de 1979, explora com ironia a relação do leitor com a obra literária. Palomar é de 1983. Traduzidos para inúmeras línguas, os três têm lugar de destaque no repertório da literatura pós-moderna da Europa. 

Calvino morreu em 1985,  em Siena, consagrado como um dos mais importantes escritores italianos do século 20. Entre seus muitos outros livros incluem-se Seis Propostas para o Próximo Milênio, Amores Difíceis e O Castelo dos Destinos Cruzados.

 

O texto A espada do sol pertence ao livro de Calvino intitulado Palomar, sua última publicação em vida. "PALOMAR é o nome de um famoso observatório astronômico que durante muito tempo ostentou o maior telescópio do mundo. Por intencional ironia, é também o nome do protagonista destes textos curtos de Italo Calvino, pois este SENHOR PALOMAR é todo olhos, mas funciona quase sempre como se fosse um telescópio ao contrário, voltado não para a amplidão do espaço, mas para as coisas próximas do cotidiano. É como se ele nos dissesse que as grandes questões do mundo e da existência também estão presentes em cada objeto que observamos, em cada cena que presenciamos, que tudo a nossa volta é digno de ser interrogado e pensado..." Transcrito da orelha do livro (Ed. Cia das Letras, 1994).


 

 

 

A espada do sol

O reflexo no mar se forma quando o sol descamba: um brilho ofuscante se estende do horizonte até a costa, feito de uma infinidade de cintilações que ondulam; entre uma cintilação e outra, o azul opaco do mar escurece a sua rede. As barcas brancas tornam-se negras contra a luz, perdem consistência e extensão, como que consumidas por aquele pontilhado resplendente.

É a hora em que o senhor Palomar, homem tardio, pratica sua natação vespertina. Entra na água, afasta-se da praia, e o reflexo do sol se torna uma espada cintilante na água que do horizonte se prolonga até ele. O senhor Palomar nada na espada ou, melhor dizendo, a espada permanece sempre diante dele, retraindo-se a cada uma de suas braçadas e jamais se deixando alcançar. Por todo o espaço em que ele estende os braços, o mar adquire seu opaco tom vespertino, que se alonga até a praia atrás dele.

Enquanto o sol desce para o ocaso, o reflexo branco incandescente se colore de ouro e cobre. E seja onde for que o senhor Palomar se coloque, o vértice daquele triângulo agudo e dourado é ele; a espada o segue, indicando-o como um ponteiro de relógio que tivesse por eixo o sol.

“É uma homenagem especial que o sol me presta”, é tentado a dizer o senhor Palomar, ou melhor, o eu egocêntrico e megalômano que nele habita. Mas o eu depressivo e autopunitivo que coabita com o outro no mesmo contentor objeta: “Todos os que têm olhos vêem o reflexo que os segue; a ilusão dos sentidos e da mente os mantém sempre prisioneiros”. Um terceiro condômino intervém, um eu mais equânime: “Quer dizer que, seja como for, faço parte dos indivíduos que sentem e pensam, capazes de estabelecer uma relação com os raios solares, e de interpretar e avaliar as percepções e as ilusões”.

Todo banhista que a esta hora nade em direção ao poente vê a nesga de luz que se dirige para ele e que se extingue pouco além do ponto a que sua braçada o leva: cada um deles tem o seu reflexo, que só para ele tem aquela direção e se desloca com ele. De ambos os lados do reflexo, o azul da água é mais escuro. “Será esse o único dado não ilusório, comum a todos, a escuridão?”, indaga-se o senhor Palomar. Mas a espada se impõe igualmente aos olhos de cada um deles, não há como fugir dela. “O que temos em comum será justo aquilo que é dado a cada um como exclusivamente seu?”

As pranchas a vela deslizam na água, cortando com abordagens oblíqüas o vento de terra que se ergue a essa hora. Figuras eretas mantêm a retranca com braços esticados como arqueiros, contendo o ar que estaleja contra a tela. Quando atravessam o reflexo eis que, em meio ao ouro que as envolve, as cores da vela se atenuam e é como se o perfil dos corpos opacos entrasse na noite.

“Tudo isso acontece não no mar, nem no sol”, pensa o nadador Palomar, “mas dentro da minha cabeça, nos circuitos entre os olhos e o cérebro. Estou nadando em minha mente; é apenas ali que existe esta espada de luz; e o que me atrai é precisamente isto. Este é o meu elemento, o único que poderei de certa forma conhecer”.

Mas pensa também: “Não posso alcançá-la, está sempre além, não pode ser ao mesmo tempo algo dentro de mim e algo em que eu nado, se a vejo permaneço fora dela e ela permanece fora”.

Suas braçadas começam a ficar mais difíceis e incertas: dir-se-ia que todo o seu raciocínio, em vez de aumentar-lhe o prazer de nadar no reflexo, o estivesse deprimindo, como que o fazendo sentir nisso um limite, ou uma culpa, ou uma condenação. E também uma responsabilidade a que não pode fugir: a espada existe só porque ele está ali; se ele fosse embora, se todos os banhistas voltassem para a praia, ou simplesmente virassem as costas ao sol, onde acabaria a espada? Do mundo que se desfaz, o que gostaria de salvar é a coisa mais frágil: aquela ponte marinha entre seus olhos e o sol poente. O senhor Palomar já não tem vontade de nadar, está com frio. Contudo, continua: agora tem que ficar na água para que o sol não desapareça.

Então pensa: “Se vejo e penso e nado no reflexo, é porque no outro extremo está o sol lançando seus raios. Só conta a origem do que é: algo que meu olhar não pode suster senão de forma atenuada como neste entardecer. Todo o resto é reflexo entre reflexos, inclusive eu”.

Passa o fantasma de uma vela; a sombra do homem-árvore desliza entre as escamas luminosas. “Sem o vento, essa geringonça que funciona graças a uns nós de plástico, ossos e tendões humanos, escotas de náilon, não se manteria de pé; é o vento que faz dela uma embarcação que parece dotada de uma finalidade própria e de um intuito; é só o vento que sabe para onde vai a prancha e o surfista”, pensa ele. Que alívio se conseguisse anular seu eu parcial e duvidoso na certeza de um princípio do qual tudo deriva! Um princípio único e absoluto do qual têm origem os atos e as formas? Ou antes, um certo número de princípios distintos, linhas de força que se entrecruzam dando uma forma ao mundo tal como ele aparece, único, instante por instante?

“... o vento e também, está implícito, o mar, a massa de água que sustenta os sólidos que bóiam e flutuam, como eu e a prancha”, pensa o senhor Palomar bancando o morto.

Seu olhar voltado para cima contempla agora as nuvens vagantes e as colinas nebulosas dos bosques. Seu eu também está ao revés dos elementos: o fogo celeste, o ar que corre, a água que berça e a terra que sustenta. Seria isso a natureza? Mas nada do que se vê existe na natureza: o sol não se põe, o mar não tem aquela cor, as formas não são as que a luz projeta na retina. Com movimentos das articulações ele flutua entre os espectros; lastros humanos em posições inaturais deslocando seu peso desfrutam não o vento mas a abstração geométrica de um ângulo entre o vento e a inclinação de um maquinismo artificial, e assim resvalam na pele lisa do mar. A natureza não existe?

O eu flutuante do senhor Palomar está imerso num mundo desincorporado, intersecções de campos de forças, diagramas vetoriais, feixes de retas que convergem, divergem, se refrangem. Mas dentro dele permanece um ponto onde tudo existe de outro modo, como um nó, um coágulo, um obstáculo: a sensação de que está aqui mas poderia não estar, num mundo que poderia não ser mas é.

Uma onda intrusa turva o mar liso; um barco a motor irrompe e segue além expandindo um cheiro de combustível e soerguendo a barriga chata. O véu de reflexos untuosos e cambiantes de combustível se desfaz flutuando dentro da água; aquela consistência material que desaparece no ofuscamento do sol não pode ser posta em dúvida por esse traço da presença física do homem, que asperge sua esteira de perdas de combustível, resíduos não assimiláveis, misturando e multiplicando a vida e a morte em torno de si.

“Este é o meu habitat”, pensa Palomar, “e não é uma questão de aceitá-lo ou excluí-lo, pois só neste meio posso existir”. Mas e se a sorte da vida sobre a terra já tivesse sido traçada? Se a corrida em direção à morte se tornasse mais forte do que qualquer possibilidade de recuperação?

A onda escorre, vagalhão solitário, até não alcançar mais a praia; e o que parecia ser apenas areia, cascalho, algas e minúsculas conchas de crustáceos, com a retirada da água agora se revela um limbo de praia constelado de frascos, caroços, preservativos, peixes mortos, garrafas de plástico, sandálias rasgadas, seringas, manchas negras de óleo.

Arrastado também pela onda do barco a motor, envolvido pela maré de escórias, o senhor Palomar de súbito se sente detrito entre os detritos, cadáver rolado sobre as praias-imundícies dos continentes-cemitérios. Se nenhum outro olhar, a não ser o olhar vidrado dos mortos, se abrisse sobre a superfície do globo terrestre, a espada não tornaria mais a brilhar.

Pensando bem, tal situação não é nova: já durante milhões de séculos os raios de sol pousaram sobre a água antes que existissem olhos capazes de recolhê-los.

O senhor Palomar nada embaixo da água; emerge; eis a espada! Um dia um olho saiu do mar, e a espada, que já estava ali à sua espera, pôde finalmente ostentar toda a esbelteza de sua ponta aguda e seu fulgor cintilante. Tinham sido feitos um para o outro, a espada e o olho: e talvez não tenha sido o nascimento do olho que tenha feito nascer a espada, mas vice-versa, porque a espada não podia recusar um olho que a observasse de seu vértice.

O senhor Palomar pensa no mundo sem ele: aquele inexistente antes de seu nascimento; e aquele bem mais escuro depois de sua morte; procura imaginar o mundo antes dos olhos, de qualquer olho; e o mundo que amanhã por uma catástrofe ou lenta corrosão se torne cego. O que ocorreria (ocorre, ocorrerá) naquele mundo? Pontual, um dardo de luz parte do sol, reflete-se no mar calmo, cintila no tremular da água, e eis que a matéria se torna receptiva à luz, diferencia-se dos tecidos vivos, e de repente um olho, uma multidão de olhos floresce, ou refloresce...

Agora todas as pranchas de surfe estão estiradas sobre a praia e até mesmo o último banhista tiritante – de nome Palomar – sai da água. Está convencido de que a espada existirá mesmo sem ele: finalmente enxuga-se com uma toalha de banho e volta para casa.

[Encontro Fevereiro 2009 coordenação: Soraya]


Julio Cortázar

Filho de pai diplomata, Julio Cortázar nasceu por acaso em Bruxelas, no ano de 1914. Com quatro anos de idade foi para a Argentina. Com a separação de seus pais, o escritor foi criado pela mãe, uma tia e uma avó. Com o título de professor normal em Letras, iniciou seus estudos na Faculdade de Filosofia e Letras, que teve que abandonar logo em seguida, por problemas financeiros. Para poder viver, deu aulas e diversos colégios do interior daquele país. Por não concordar com a ditadura vigente na Argentina, mudou-se para Paris, em 1951. Autor de contos considerados como os mais perfeitos no gênero, podemos citar entre suas obras mais reconhecidas “Bestiário” (1951), “Las armas secretas” (1959), ), “Rayuela”, (1963), “Todos los fuegos el fuego” (1966), “Ultimo round” (1969), “Octaedro” (1974), “Pameos y Meopas” (1971), “Queremos tanto a Glenda (1980) e “Salvo el crepúsculo” – póstumo (1984). O escritor morreu em Paris, de leucemia, em 1984.

(Extraído de: http://www.releituras.com/jcortazar_menu.asp)


O texto Carta a uma senhorita em Paris foi publicado originalmente em "Bestiario" Bom Texto Editora, 2005.


Carta a uma senhorita em Paris

Andrée, eu não queria vir morar em seu apartamento da Rua Suipacha. Não tanto pelos coelhinhos, mas porque me desagrada entrar em uma ordem fechada, já construída até nas mais finas malhas do ar, essas que em sua casa preservam a música da lavanda, o adejar de um cisne com pós, o dueto de violino e viola no quarteto de Rará. Para mim é difícil entrar em um ambiente onde alguém que vive confortavelmente dispôs tudo como uma reiteração visível de sua alma, aqui os livros (de um lado em espanhol, do outro francês e inglês), ali os almofadões verdes, neste exato lugar da mesinha o cinzeiro de cristal que parece a metade de uma bolha de sabão, e sempre um perfume, um som, um crescer de plantas, uma fotografia de amigo morto, ritual de bandejas com chá e pinças de açúcar... Ah, querida Andrée, como é difícil opor-se, embora aceitando-a com inteira submissão do próprio ser, à minuciosa ordem que uma mulher instaura em sua agradável residência. Como é condenável pegar uma tacinha de metal e pô-la na outra extremidade da mesa, pô-la ali simplesmente porque alguém trouxe seus dicionários de inglês e é deste lado, ao alcance da mão, que deverão estar. Mexer nessa tacinha vale por um horrível vermelho inesperado em meio a uma modulação de Ozenfant, como se de repente as cordas de todos os contrabaixos rebentassem ao mesmo tempo com a mesma espantosa chicotada no instante mais suave de uma sinfonia de Mozart. Mexer nessa tacinha altera o jogo de relações de toda a casa, de um objeto com outro, de cada momento de sua alma com a alma inteira da casa e sua distante moradora. E eu não posso aproximar os dedos de um livro, ajustar de leve o cone de luz de um lampião, abrir a tampa da caixa de música, sem que um sentimento de ultraje e desafio me passe pelos olhos como um bando de pardais.



Você sabe por que vim a sua casa, a seu tranqüilo salão festejado do sol. Tudo parece tão natural, como sempre que não se sabe a verdade. Você foi a Paris, eu fiquei com o apartamento da Rua Suipacha, elaboramos um simples e satisfatório plano de mútua conveniência, até que setembro a traga de novo a Buenos Aires e me atire a alguma outra casa onde talvez... Mas não lhe escrevo por isso, escrevo esta carta por causa dos coelhinhos, me parece justo informá-la; e porque gosto de escrever cartas, e talvez porque chove.



Mudei-me na quinta-feira passada, às cinco da tarde, entre névoa e tédio. Fechei tantas malas em minha vida, passei tantas horas preparando bagagens que não levava a parte nenhuma, que aquela quinta-feira foi um dia cheio de sombras e correias, porque quando vejo as correias das malas é como se visse sombras, partes de um látego que me açoita indiretamente, de maneira mais sutil e mais horrível. Mas fiz as malas, avisei sua criada que viria me instalar aqui, e subi de elevador. Precisamente entre o primeiro e o segundo andar, senti que ia vomitar um coelhinho. Nunca lhe contara antes, não pense, porém, que por deslealdade, mas naturalmente a gente não vai ficar explicando aos outros que, de quando em quando, vomita um coelhinho. Como isto me sucedia estando só, escondia o fato como se escondem tantos detalhes do que acontece (ou a gente faz acontecer) na intimidade total. Não me censure, Andrée, não me censure. De quando em quando me acontece vomitar um coelhinho. Não é razão para não viver em qualquer casa, não é razão para que a gente deva se envergonhar e estar isolado e andar se calando.



Quando sinto que vou vomitar um coelhinho, ponho dois dedos na boca como uma pinça aberta, e espero sentir na garganta a penugem morna que sobe como uma efervescência de sal de frutas. Tudo é rápido e higiênico, transcorre em um brevíssimo instante. Tiro os dedos da boca, e neles trago preso pelas orelhas um coelhinho branco. O coelhinho parece contente, é um coelhinho normal e perfeito, só que muito pequeno, pequeno como um coelhinho de chocolate, mas branco e completamente um coelhinho. Ponho-o na palma da mão, levanto sua penugem com uma carícia dos dedos, o coelho parece satisfeito de haver nascido e bole e esfrega o focinho na minha pele, movimentando-o com essa trituração silenciosa e cosquenta do focinho de um coelho contra a pele de uma mão. Queria comer, e eu (falo de quanto isto acontecia em minha casa de campo) o levo comigo à varanda e ponho-o no grande vaso onde cresce o trevo que plantei para esse fim. O coelhinho levanta bem suas orelhas, envolve o trevo novo com um veloz molinete do focinho, e eu sei que posso deixá-lo e ir embora, continuar por algum tempo uma vida não diferente da de tantos que compram seus coelhos nas granjas.



Entre o primeiro e o segundo andar, Andrée, como um aviso de como seria minha vida em sua casa, soube que ia vomitar um coelhinho. Em seguida tive medo (ou era surpresa? Não, medo da própria surpresa, talvez), porque antes de deixar minha casa, só dois dias antes, tinha vomitado um coelhinho e estava livre por um mês, cinco semanas, talvez seis com um pouco de sorte. Veja você, eu tinha resolvido completamente o problema dos coelhinhos. Plantava trevo na varanda da minha outra casa, vomitava um coelhinho, punha-o no trevo e, ao fim de um mês, quando suspeitava que de um momento para outro... então dava o coelho já crescido à Sra. de Molina, que imaginava um hobby meu e não dizia nada. Já em outro vaso vinha crescendo um trevo novo e oportuno, eu esperava despreocupado a manhã em que a cosquinha de uma penugem subindo me fechava a garganta, e o novo coelhinho repetia desde aquele momento a vida e os costumes do anterior. Os costumes, Andrée, são formas concretas do ritmo, são a quota de ritmo que nos ajuda a viver. Não era tão horrível vomitar coelhinhos, uma vez que isso havia entrado no ciclo invariável, no método. Você há de querer saber por que todo esse trabalho, por que todo esse trevo e a Sra. de Molina. Teria sido preferível matar imediatamente o coelhinho e... Ah, você teria que vomitar um que fosse, pegá-lo com dois dedos e colocá-lo na mão aberta, ainda aderido a você pelo próprio ato, pela aura inefável de sua proximidade recém-partida. Um mês distancia tanto; um mês é tanto, pêlos compridos, saltos, olhos selvagens, diferença absoluta. Andrée, um mês é um coelho, faz de verdade um coelho; mas o minuto inicial, quando o floco morno e buliçoso encobre uma presença inconfundível... Como um poema nos primeiros minutos, o fruto de uma noite de Iduméia: tão da gente que a gente mesmo... e depois tão não a gente, tão isolado e distante em seu raso mundo branco tamanho mapa.



Decidi, contudo, matar o coelhinho mas nascesse. Eu viveria quatro meses em sua casa: quatro - talvez, com sorte, três - colheradas de álcool no focinho. (Você sabe que a misericórdia permite matar instantaneamente um coelhinho dando-lhe de beber uma colherada de álcool? Sua carne então sabe melhor, dizem, embora eu... Três ou quatro colheradas de álcool, em seguida o banheiro ou um pacote se somando ao lixo.)



Ao passar pelo terceiro andar o coelhinho se mexia em minha mão aberta. Sara esperava em cima, para me ajudar a entrar com as malas... Como lhe explicar que um capricho, uma casa que vende animais? Embrulhei o coelhinho no meu lenço, coloquei-o no bolsinho do sobretudo, deixando-o desabotoado para não espremê-lo. Mal se mexia. Sua miúda consciência devia estar revelando fatos importantes: que a vida é um movimento para cima com um clique final, e que é também um céu baixo, envolvente e cheirando a lavanda, no fundo de um poço morno.



Sara não viu nada, fascinava-a o muito duro problema de ajustar o seu sentido de ordem a minha mala-roupeiro, meus papéis e minha displicência diante de suas elaboradas explicações, em que abunda a expressão "por exemplo". Tão logo pude, me fechei no banheiro; matá-lo agora. Uma fina zona de calor rodeava o lenço, o coelhinho era branquíssimo e acho que mais lindo que os outros. Não me olhava, apenas bulia e estava contente, o que era o mais horrível modo de olhar. Encerrei-o no pequeno armário vazio e voltei-me para desfazer as malas, desorientado mas não infeliz, mas culpado, não ensaboando as mãos para tirar delas uma última convulsão.



Compreendi que não podia matá-lo. Mas nessa mesma noite vomitei um coelhinho negro. E dois dias depois um branco. E na quarta noite um coelhinho cinza.



Você deve amar o belo armário do seu quarto, com aquela grande porta que se abre generosa, as prateleiras vazias à espera da minha roupa. Guardo-os ali agora. Ali dentro. Verdade que parece impossível; nem Sara acreditaria. Porque Sara não desconfia de nada, e o fato de que não desconfie de nada se deve a minha horrível tarefa, uma tarefa que consome meus dias e minhas noites num só golpe de rastelo e vai me queimando por dentro e endurecendo como aquela estrela-do-mar que você pôs na banheira e que a cada banho parece encher o corpo da gente de sal e açoites do sol e grandes rumores da profundidade.



De dia dormem. São dez. De dia dormem. Com a porta fechada, o armário é uma noite diurna só para eles, e lá eles dormem sua noite com sossegada obediência. Levo comigo as chaves do quarto ao sair para o trabalho. Sara deve pensar que ponho em dúvida a honradez dela e me olha desconfiada, noto todas as manhãs que está por me dizer alguma coisa, mas por fim se cala, e eu fico muito contente... (Quando arruma o quarto, das nove às dez, faço ruído na sala, ponho um disco de Beny Carter que toma todo o ambiente, e como Sara é também amiga de saetas e pasodobles, o armário parece silencioso e talvez esteja mesmo, porque para os coelhinhos agora é noite e hora de descanso.)



O dia deles principia nessa hora que vem depois do jantar, quando Sara leva a bandeja com um miúdo tilintar de pinças de açúcar, me deseja boa-noite - sim, deseja, Andrée, o mais triste é que me deseja boa-noite ¿ e se fecha em seu quarto e imediatamente estou só, só com o maldito armário, só com meu dever e minha tristeza.



Deixo-os sair, se lançaram ágeis ao assalto do salão, cheirando lépidos o trevo que meus bolsos ocultavam e agora faz no tapete efêmeras rendas que eles alteram, removem e acabam num instante. Comem bem, calados, corretos, até esse instante nada tenho a dizer, só os olho do sofá, com um livro inútil na mão - eu que queria ler todos os seus Giraudoux, Andrée, e a história argentina de López que você tem na prateleira mais baixa -; e comem o trevo.



São dez. Quase todos brancos. Levantam a morna cabeça para as lâmpadas do salão, os três sóis imóveis do seu dia, eles que amam a luz porque sua noite não tem lua nem estrelas nem lampiões. Olham seu triplo sol e estão contentes. Por isso, pulam no tapete, pelas cadeiras, dez suaves manchas se movimentam como uma constelação móvel, de um lado para outro, embora eu quisesse vê-los quietos, vê-los a meus pés e quietos - um pouco o sonho de todo deus, Andrée, o sonho jamais realizado dos deuses - não assim, se insinuando atrás do retrato de Miguel de Unamuno, à volta do grande jarro verde-claro, pela negra cavidade da escrivaninha, sempre menos de dez, sempre seis ou oito, e eu me perguntando onde andarão os dois que faltam, e se Sara se levantasse por qualquer coisa, e a Presidência de Rivadavia que eu queria ler na história de López.



Não sei como resisto, Andrée. Você recorda que vim descansar em sua casa. Não tenho culpa se de quando em quando vomito um coelhinho, se esta mudança me alterou também por dentro - não é nominalismo, não é magia, é apenas que as coisas não podem mudar assim de repente, às vezes as coisas mudam brutalmente e quando a gente esperava a bofetada à direita. Assim, Andrée, ou de outra maneira, mas sempre assim.



Escrevo-lhe de noite. São três da tarde, mas escrevo na noite deles. De dia dormem. Que alívio este escritório coberto de gritos, ordens, máquinas Royal, vice-presidentes e mimeógrafos! Que alívio, que paz, que horror, Andrée! Agora me chamam ao telefone, são os amigos que se inquietam com minhas noites recolhidas, é Luís que me convida a caminhar ou Jorge que reservou entradas para um concerto. Quase não me atrevo a lhes dizer que não, invento prolongadas e ineficazes histórias de má saúde, de traduções atrasadas, de evasão. E quando retorno e subo de elevador - aquela passagem, entre o primeiro e o segundo andar - renovo noite a noite irremediavelmente a vã esperança de que não seja verdade.



Faço o que posso para que não destrocem suas coisas. Roeram pouco os livros da prateleira mais baixa, você os encontrará dissimulados para que Sara não note. Você gostava muito do lampião com o ventre de porcelana cheio de borboletas e antigos cavalheiros? O trincado mal se percebe, trabalhei toda noite com uma cola especial que me venderam em uma casa inglesa - você sabe que as casas inglesas têm as melhores colas - e agora fico ao lado dele para que nenhum dos coelhos o alcance outra vez com as patas (é quase belo ver como gostam de se pôr em pé, lembrança do humano distante, talvez a imitação de seu deus deambulando e os olhando carrancudo; além disso você terá percebido - em sua infância, talvez - que se pode deixar um coelhinho em penitência contra a parede, de pé, as patinhas apoiadas e muito quieto horas a fio).



Às cinco da manhã (dormi um pouco, estendido no sofá verde, e acordando a cada corrida aveludada, a cada tilintar) eu os ponho no armário e faço a limpeza. Por isso Sara encontra tudo em ordem, embora às vezes eu tenha notado nela algum espanto contido, um estar olhando um objeto, uma leve descoloração do tapete, e de novo o desejo de me perguntar alguma coisa, mas eu, assoviando as variações sinfônicas de Franck, faço que nem é comigo. Para que lhe contar, Andrée, as minúcias desventuradas desse amanhecer surdo e vegetal, em que caminho entredormido levantando cabos de trevo, folhas soltas, pêlos brancos, aos encontrões nos móveis, louco de sono, e meu Gide que se atrasa, Troyat que não traduzi, e minhas respostas a uma senhora distante que já estará se perguntado se...? Para que continuar com tudo isto, para que continuar esta carta que escrevo entre telefones e entrevistas.



Andrée, querida Andrée, meu consolo é que são dez e não virão mais. Faz quinze dias que segurei na palma da mão um último coelhinho, depois nada, são só aqueles dez que estão comigo, sua diurna noite e agora crescendo, agora feios e nascendo o pêlo comprido, agora adolescentes e cheios de necessidades e caprichos, saltando sobre o busto de Antínoo (é Antínoo, de fato, aquele rapaz que olha cegamente?) ou se perdendo no living onde seus movimentos criam ruídos ressonantes, tanto que dali devo tirá-los, com medo de que Sara os ouça e apareça horripilada, talvez de camisola - porque Sara deve ser assim, com camisola - e então... Somente dez, pense você que nessa pequena alegria que sinto, em meio a tudo isso, a crescente calma com que ultrapasso de volta os rígidos tetos do primeiro e do segundo andar.



***

Interrompi esta carta porque devia participar de um trabalho de comissões. E a continuo aqui em sua casa, Andrée, sob uma silenciosa grisalha de amanhecer. É o mesmo dia seguinte, Andrée? Um pedaço em branco da página será para você o intervalo, apenas a ponte que une a minha letra de ontem à minha letra de hoje. Dizer-lhe que nesse intervalo tudo terminou, onde você vê a ponte livre eu vejo quebrar-se a cintura furiosa da água, para mim este lado do papel, este lado da minha carta não continua a calma com que eu vinha escrevendo, quando eu a deixei para participar de um trabalho de comissões. Em sua cúbica noite sem tristeza dormem onze coelhinhos; talvez agora mesmo, mas não, não agora ¿ No elevador, logo, ou ao entrar; não importa mais onde, se o quando é agora, se pode ser em qualquer agora dos que me restam.



Agora chega, escrevi isto porque me interessa provar-lhe que não fui tão culpado na destruição inevitável de sua casa. Deixarei esta carta à sua espera, seria sórdido que o Correio a entregasse a você em alguma clara manhã de Paris. Na noite passada virei os livros da segunda estante; eles já os alcançavam, ficando de pé ou saltando, roeram as lombadas para afiar os dentes ¿ não por fome, têm todo o trevo que compro e armazeno para eles nas gavetas da escrivaninha. Rasgaram as cortinas, os forros das poltronas, a moldura do auto-retrato de Augusto Torres, encheram de pêlos o tapete e também gritaram, estiveram dando voltas sob a luz do lustre, em círculo e como que me adorando, e então gritavam, gritavam como eu não acredito que os coelhos gritem.



Quis em vão tirar os pêlos que enfeiam o tapete, aparar as beiras da fazenda roída, encerrá-los de novo no armário. O dia sobe, talvez Sara se levante logo. É quase estranho que Sara não me importe. É quase estranho que não me importe de vê-los saltar em busca de brinquedos. Não tive tanta culpa, você verá quando chegar que muitos dos destroços estão bem reparados com a cola que comprei em uma casa inglesa, eu fiz o que pude para lhe evitar um desgosto... Quanto a mim, do dez ao onze há como um vazio insuperável. Você vê: dez estava bem, com um armário, trevo e esperança, quantas coisas se podem construir. Mas não com onze, porque dizer onze é certamente dizer doze, Andrée, doze que será treze. Então há o amanhecer e uma fria solidão na qual cabem a alegria, as recordações, você e talvez tanta coisa mais. Há esta sacada sobre Suipacha cheia de aurora, os primeiros sons da cidade. Não acredito que lhes seja difícil juntar onze coelhinhos salpicados sobre os paralelepípedos, talvez nem os notem, atarefados com o outro corpo que convém levar logo, antes que passem os primeiros colegiais.


[Encontro Janeiro 2009 coordenação: Dan]