terça-feira, 8 de novembro de 2011

Texto para ser partilhado...

A Galinha Degolada

Horácio Quiroga



O dia inteiro sentados num banco do pátio, ficavam os quatro filhos idiotas do matrimônio Mazzini-Ferraz. Tinham a língua entre os lábios, os olhos estúpidos vazios e se voltavam com a boca aberta. O pátio era de chão batido, fechado a oeste por um muro de ladrilhos. O banco ficava paralelo a ele, a uma distância de cinco metros, e ali os filhos se mantinham imóveis, com os olhos fixos nos ladrilhos. O sol desaparecia detrás do muro e, ao declinar, os idiotas faziam festa. A princípio, a luz alucinante chamava sua atenção e, pouco a pouco, seus olhos se animavam: riam finalmente estrepitosos, congestionados pela mesma hilaridade ansiosa, contemplando o sol com uma espécie de alegria bestial..

Outras vezes, alienados no banco, zumbabam horas inteiras, imitando o bonde elétrico. Os ruídos violentos sacudiam desta forma sua inércia e então corriam, mordendo a própria língua e bramando, ao redor do pátio. Contudo, quase sempre estavam apagados, imersos na profunda letargia do idiotismo, e passavam todo o dia sentados em seu banco, com as pernas suspensas e quietas, empapando a calça de uma saliva grossa.

O mais velho tinha doze anos e o menor, oito. Em todo seu aspecto sujo e miserável, notava-se a falta absoluta de um mínimo cuidado maternal..

Esses quatro idiotas, no entanto, tinham sido um dia o encanto de seus pais. Com três meses de casados, Manzzini e Berta orientaram seu estreito amor de marido e mulher, mulher e marido, para um futuro muito mais vital: um filho. Que maior felicidade para dois apaixonados que essa honrosa consagração de seu carinho, libertado já do vil egoísmo de um mútuo amor sem fim nenhum e o que é pior para o amor mesmo, sem esperanças possíveis de renovação?

Assim estavam Mazzini Berta, e quando o filho nasceu, aos catorze meses de casamento, acreditaram cumprida sua felicidade. A criança cresceu bela e radiante, até um ano e meio. Porém, no vigésimo mês, sacudiram-na uma noite convulsões terríveis, e na manhã seguinte não conhecia mais seus pais. O médico examinou-o com essa atenção profissional de quem está visivelmente buscando o mal nas enfermidades dos pais.

Depois de alguns dias, os membros paralisados recuperaram o movimento; porém a inteligência, a alma, até o instinto se haviam ido tudo: tinha ficado profundamente idiota, babão, pendente, morto para sempre sobre os joelhos da sua mãe.

— Filho, meu filho querido!— soluçava esta, sobre aquela espantosa ruína de seu primogênito.

O pai, desolado, acompanhou-a ao médico.

— A você se pode dizê-lo. Creio que é um caso perdido. Poderá melhorar, educá-lo com todas as limitações de seu idiotismo, porém não mais longe.

— Sim…! Sim — assentia Mazzini. — Porém, diga-me: você acredita que é hereditário, que...?

— Quanto à hereditariedade paterna, já lhe disse o que acreditava quando vi seu filho. Respeito sua mãe, mas há ali um pulmão que não sopra bem. Não vejo nada mais, porém há um sopro um pouco áspero. Faça com que ela o examine bem.

Com a alma destroçada pela aflição, Mazzini redobrou o amor a seu filho, o pequeno idiota que pagava pelos excessos do avô. Teve assim mesmo que consolar, prestar apoio sem trégua a Berta, ferida no mais profundo por aquele fracasso de sua jovem maternidade.

Como é natural, o casamento pôs todo seu amor na esperança de outro filho. Nasceu este, e sua saúde e seu riso límpido reacenderam o futuro entinto. Porém, aos dezoito meses as convulsões do primogênito se repetiram, e no dia seguinte amanheceu idiota.

Desta vez, os pais mergulharam em profundo desespero. Logo seu sangue, seu amor estavam malditos! Seu amor, sobretudo! Vinte e oito anos ele; vinte e dois, ela, e toda sua apaixonada ternura não conseguia criar um átomo de vida normal. Já não pediam mais beleza e inteligência como no primogênito; mas apenas um filho! Um filho, como todos!

Do novo desastre brotaram novas labaredas do dolorido amor, um louco desejo de redimir uma vez para sempre a santidade de sua ternura. Vieram gêmeos, e ponto por ponto, repetiu-se o processo dos dois mais velhos.

Mas, por cima de sua imensa amargura, ficava em Mazzini e Berta uma grande compaixão por seus quatro filhos. Teve que arrancar do limbo da mais funda animalidade, não já suas almas, senão o instinto mesmo abolido. Não sabiam deglutir, trocar de lugar, nem mesmo sentar-se. Aprenderam finalmente caminhar, porém se chocavam contra tudo, por não se dar conta dos obstáculos. Quando os banhavam, mugiam até injetar-se de sangue o rosto. Animavam-se somente ao comer, ou quando viam cores brilhantes ou quando ouviam trovões. Riam-se, então, jogando para fora a língua e rios de baba, radiantes de frenesi bestial. Tinham, em troca, certa faculdade imitativa; porém não se pode obter nada mais. Com os gêmeos parecia haver-se concluído a aterradora descendência. Contudo, transcorridos três anos, desejaram de novo ardentemente outro filho, confiando em que o longo tempo transcorrido houvesse serenado a fatalidade.

Não satisfaziam suas esperanças. E nesse ardente desejo que se exasperava, em razão de sua infrutuosidade, acidularam-se. Até esse momento, cada qual havia tomado sobre si a parte que lhe correspondia na miséria de seus filhos; porém a desesperança de redenção ante as quatro bestas que haviam nascido deles, jogaram fora essa imperiosa necessidade de culpar aos outros, que é patrimônio específico dos corações inferiores..

Iniciaram-se com a troca do pronome: teus filhos. E, além do insulto, havia a insídia, a atmosfera se carregava.

—Me parece — disse-lhe uma noite Mazzini, que acabava de entrar e lavava as mãos— que poderias deixar mais limpos os meninos.

Berta continuo lendo como si não o houvesse ouvido.

— É a primeira vez — refez-se a tempo— que te vejo inquietar-te pelo estado de teus filhos.

Mazzini voltou um pouco a cara para ela com um sorriso forçado:

— De nossos filhos, me parece?

— Bom; de nossos filho. Fica bem assim? —levantou ela os olhos.

Desta vez, Mazzini expressou-se claramente:

— Creio que não vais dizer que eu tenho a culpa, não?

—Ah, não! — sorriu Berta, muito pálida — porém eu tampouco, suponho...! Não faltava mais...! —murmurou

— O quê, não faltava mais?

— Que se alguém tem a culpa, não sou eu, entenda-o muito bem! Isso é o que queria te dizer.

Seu marido olhou-a por um momento, com um brutal desejo de insultá-la.

— Deixemos! — articulou, secando-se por fim as mãos.

— Como quiseres; porém se quiseres dizer….

— Berta!

— Como quiseres!

Este foi o primeiro choque, e lhes sucederam outros. Porém, nas inevitáveis reconciliações, suas almas uniam-se com duplo arrebatamento e loucura por outro filho.

Nasceu assim uma menina. Viveram dois anos com a angústia à flor da pele, esperando sempre outro desastre. Nada aconteceu, entretanto, e os pais puseram nela toda sua complacência, que a pequena levava ao mais extremos limites do mimo e da má criança.

Se assim nos último tempo Berta cuidava sempre de seus filhos, ao nascer Bertita, esqueceu-se quase de todo dos outros. Só sua recordação a horrorizava, como algo atroz que a houvessem obrigado a cometer. A Mazzini, bem que em menor grau, acontecia o mesmo.

Não por isso a paz havia chegado a suas almas. À menor indisposição de sua filha, corria para fora, com o terror de perdê-la, os rancores de sua descendência podre. Tinham acumulado ressentimento de sobra para que o vaso ficasse tenso, e ao menor contato o veneno o veneno se esvaziasse para fora. Desde o primeiro desgosto inoculado, haviam-se perdido o respeito; e se há algo que o homem se sente trasladado com cruel gozo é quando já se começou a humilhar de todo a uma pessoa. Antes se continham pela mútua falta de êxito; agora que este havia chegado, cada qual, atribuindo-o a si mesmo, sentia maior a infâmia das quatro aberrações que o outro lhe havia forçado a conceber.

Com estes sentimentos, não houve já para os quatro filhos maiores nenhum afeto possível. A empregada doméstica os vestia, dava-lhes de comer, deitava-os, com visível brutalidade. Quase nunca os banhava. Passavam quase todo o dia sentados de frente para o muro, abandonados de qualquer remota carícia.

Deste modo, Bertita cumpriu quatro anos, e nessa noite, por causa dos doces que era aos pais absolutamente negar-lhe, a menina teve calafrios e febre. O temor de vê-la morrer ou tornar-se idiota, tornou a reabrir a eterna ferida.

Fazia três horas que não se falavam e o motivo foi, como quase sempre, os fortes passos de Manzini.

— Meu Deus! Não podes caminhar mais devagar? Quantas vezes...?

— Bem, é que me esqueço. Acabou-se. Não o faço de propósito.

Ela sorriu com desdém:

— Não, não te acredito tanto!

— Nem eu, jamais, tinha acreditado tanto em ti....tisiquinha!

— Quê! Quê disseste...?

— Nada!

— Sim, ouvi algo de ti! Olha, não sei o que disseste; porém te juro que prefiro qualquer coisa a ter um pai como o que tens tido tu!

Manzini ficou pálido.

— Por fim! —murmurou com os dentes cerrados.— Por fim, víbora, hás dito o que querias!

— Sim, víbora, sim! Porém eu tive pais sadios! Ouves? Sadios! Meu pai não morreu de delírios!Eu havia de ter tido filhos como os de todo o mundo! Esses são filhos teus, os quatro, teus!

Mazzini explodiu por sua vez:

— Víbora tísica!Isso é o que lhe disse, o que quero te dizer! Pergunta-o ao médico, pergunta ao médico quem tem a maior culpa da meningite de teus filhos: meu pai ou teu pulmão doente, víbora!

Continuaram cada vez mais com maior violência, até que um gemido de Bertita selou instantaneamente suas bocas. À uma da manhã, a ligeira indigestão havia desaparecido, como acontece fatalmente com todos os casais jovens que têm se amado intensamente uma vez sequer, a reconciliação chegou, tanto mais efusiva quanto mais ofensivos foram os ultrajes.

Amanheceu um dia esplêndido, e enquanto Berta se levantava, cuspiu sangue. As más emoções e a má noite passada tinham, sem dúvida, grande culpa. Mazzini a reteve abraçada um longo tempo, e ela chorou desesperadamente, porém sem que nenhum se atrevesse a dizer uma palavra..

Às dez decidiram sair, depois de comer. Como mal tinham tempo, ordenaram à empregada
que matasse uma galinha.

O dia radiante havia arrebatado os idiotas de seu banco. De modo que enquanto a empregada degolava na cozinha a ave, dessangrando-a com parcimônia (Berta havia aprendido de sua mãe este bom modo de conservar a carne mais fresca), acreditou sentir algo como respiração atrás dela. Voltou-se, e viu aos quatro idiotas, com os ombros emparelhados um ao outro, olhando estupefatos a operação...Vermelho...Vermelho....

— Senhora, os meninos estão aqui na cozinha.

Berta chegou; não queria que jamais pisassem ali. E nem ainda nessas horas de pleno perdão e felicidade reconquistada, podia evitar-se essa horrível visão! Porque, naturalmente, quando mais intensos eram os êxtases de amor a seu marido e sua filha, mais irritado era seu humor com os monstros.

— Que saiam, Maria! Expulse-os! Expulse-os, lhe digo!

As quatro pobres bestas, sacudidas, brutalmente empurradas, foram para seu banco.

Depois de almoçar, saíram todos. A empregada foi a Buenos Aires, e o casal a passear pelas chácaras. Quando o sol baixou voltaram, porém, Berta quis saudar um momento suas vizinhas de frente. Sua filha escapou-se em seguida rumo a casa.

Entretanto os idiotas não se haviam movido todo o dia de seu banco. O sol já havia transposto o muro, começava a fundir-se, e eles continuavam contemplado os ladrilhos, mais inertes do que nunca.

De repente, algo se interpôs entre seu olhar e o muro. Sua irmã, cansada de cinco horas junto ao pai, queria observar por sua conta. Parada ao pé do muro, olhava pensativa o cume. Queria subir, isso não oferecia dúvida. Por fim decidiu-se por uma cadeira, sem fundos, porém faltava mais. Recorreu então a uma caixa de querosene e seu instinto topográfico fez-lhe colocar o móvel na vertical, com o qual triunfou.

Os quatro idiotas, com o olhar indiferente, viram como sua irmã lograva pacientemente dominar o equilíbrio, e como, na ponta dos pés, apoiava a garganta sobre o topo do morro, entre suas mãos delicadas. Viram-na olhar para todos os lados, e buscar apoio com o pé para elevar-se mais.

Porém o olhar dos idiotas havia se animado. Uma mesma luz insistente estava fixa em suas pupilas. Não afastavam os olhos de sua irmã, enquanto uma crescente sensação de gula bestial ia transtornando cada linha de seus rostos. Lentamente avançaram até o muro. A pequena, que tendo conseguido calçar um pé, ia já montar a cavalo no muro e a cair do outro lado, seguramente, mas sentiu-se segura pela perna. Debaixo dela, os oito olhos cravados nos seus lhe deram medo.

— Solta-me! Deixa-me! —gritou sacudindo a perna. Porém foi atraída.

— Mamãe! Ai, Mamãe! Mamãe, papai! — chorou imperiosamente. Tratou ainda de agarrar-se à borda, porém sentiu-se arrancada e caiu.

— Mamãe, aí! Ma... — Não conseguiu gritar mais. Um deles lhe apertou o pescoço e os outros arrastaram-na por uma só perna até a cozinha, onde essa manhã haviam dessangrado a galinha, bem submissa, arrancando-lhe a vida por segundos.

Mazzini, na casa em frente, acreditou ouvir a voz de sua filha.

— Me parece que te chama — disse-lhe Berta.

Prestaram atenção, inquietos, porém não ouviram mais nada. Contudo, um instante depois se separaram, e enquanto Berta ia deixar seu chapéu, Manzzini avançou no pátio:

—Bertita!

Ninguém respondeu.

— Bertita! —elevou mais a voz, já alterada.

E o silêncio foi tão fúnebre para seu coração sempre aterrorizado, que a coluna se lhe gelou de um horrível pressentimento

— Minha filha! — correu já desesperado até os fundos. Porém ao passar em frente da cozinha, viu no piso um mar de sangue. Empurrou violentamente a porta entreaberta, e lançou um grito de horror.

Berta, que já se havia lançado correndo por sua vez ao ouvir o aflito chamado do pai, ouviu o grito e respondeu com outro. Porém ao precipitar-se na cozinha, Manzini, muito lívido, interpôs-se, contendo-a.

— Não entres! Não entres!

Berta conseguiu ver o piso inundado de sangue. Só pôde jogar seus braços sobre a cabeça e abraçar-se ao marido com um áspero suspiro.




*Obra-prima do autor uruguaio, incluída na coletânea “Contos de Amor, Loucura e Morte”

domingo, 24 de julho de 2011

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Benção


[...]

É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração

Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não

Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração

Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não

Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não

Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração

eu por exemplo, a voz de flecha

cantora do mundo,

atriz de mim mesma

filha amada de todos os Orixás

Saravá

A bênção, Senhora
A maior ialorixá da Bahia
Terra de Caymmi e João Gilberto
A bênção, Pixinguinha
Tu que choraste na flauta
Todas as minhas mágoas de amor
A bênção, Sinhô, a benção, Cartola
A bênção, Ismael Silva
Sua bênção, Heitor dos Prazeres
A bênção, Nelson Cavaquinho
A bênção, Geraldo Pereira
A bênção, meu bom Cyro Monteiro
Você, sobrinho de Nonô
A bênção, Noel, sua bênção, Ary
A bênção, todos os grandes
Sambistas do Brasil
Branco, preto, mulato
Lindo como a pele macia de Oxum
A bênção, maestro Antonio Carlos Jobim
Parceiro e amigo querido
Que já viajaste tantas canções comigo
E ainda há tantas por viajar
A bênção, Carlinhos Lyra
Parceiro cem por cento
Você que une a ação ao sentimento
E ao pensamento
A bênção, a bênção, Baden Powell
Amigo novo, parceiro novo
Que fizeste este samba comigo
A bênção, amigo
A bênção, maestro Moacir Santos
Não és um só, és tantos como
O meu Brasil de todos os santos
Inclusive meu São Sebastião
Saravá!

A bênção, que eu vou partir

Eu vou ter que dizer adeus [...]

A benção Dona Denise Stucchi, mulher de fibra, mulher que ensina, mulher de amor

A benção Sr Fabiano, irmão mais lindo que Deus me deu

A benção Sr Leo, pelo coração puro e a alma nobre.

A benção Soraya pelos olhares de interrogação.

A benção Sr José Pedro, pela vitalidade de pedra.

A bençao Marcela, pelo som que sai da sua percussão.

A benção Cleide, pela força de suas pinceladas coloridas...

A benção Gui, pela doçura pisciana, pelo sorriso...

A benção Bix, pelo negrume dos olhos, pelas fotografias.

A benção Dan, por revelar o amor em grupo...

A benção Erika, pelas saudades e pela inteligência alegre...

A benção Sr Theo, pela generosidade, pela música, pelo tempero...

A benção Belchior, pela graça, pela companhia...

A benção Camila, pela sanidade, criatividade e luz...

A benção Dona Elaine, pela saudade, pelo pertencimento.

Saravá, saravá, saravá